A Dra. Siri, a Dra. Cortana e as Amigas 877

A Dra. Siri, a Dra. Cortana e as Amigas não existem. Mas existem. Não estudaram medicina. Mas é como se tivessem estudado. Ou não?

A Siri, a Cortana, e outras que eventualmente existam, são assistentes pessoais inteligentes que respondem às questões que lhes colocamos, podem fazer recomendações e executar tarefas a nosso pedido. Moram nos nossos smartphones, tablets, smartwatches, smartglasses, carros ou televisões, desde que tenham instalado o sistema operativo onde “vivem”. E que o que tem isto a ver com a saúde? Por enquanto parece que pouco. Mas não é bem assim.

Muitos smartphones já trazem instalada uma app que recolhe informação sobre atividade física. Outros trazem também instaladas apps que permitem registar informação sobre hábitos alimentares, padrões de sono, etc. Os smartwatches podem ter sensores que medem os batimentos cardíacos, a temperatura do corpo, o suor, etc. As possibilidades são imensas: quer em termos de dispositivos que podemos usar, quer em termos do que podem vir a medir.

Existem ainda dispositivos de fitness como a Fitbit ou a Jawbone, entre outros, que precederam os smartwatches, e que têm como principal objetivo promover a atividade física de quem os utiliza e um estilo de vida mais saudável.

Todos estes dispositivos são atualmente utilizados por milhões de pessoas recolhendo milhões de dados. Existem milhares de apps que descarregamos para estes dispositivos e onde registamos muita informação sobre nós e sobre o nosso estilo de vida (idade, peso, altura, atividade física, alimentação, padrões de sono, doenças, estados de espírito, alergias, dor, ciclo menstrual, fertilidade, medicamentos que tomamos, etc.).

E não sabemos quem tem acesso a estes dados, onde são guardados, para que fins são utilizados, se são vendidos. Simultaneamente, não sabemos se o conteúdo científico das apps é rigoroso e actualizado com regularidade. Muitas apps não são testadas nem validadas e podem dar conselhos contrários à melhor prática médica.

Contudo, as apps fazem parte da nossa realidade e não parece que venham a desaparecer num futuro próximo. Creio que a tendência é para aumentar o seu número, bem como o tipo de dispositivos onde estão presentes.

Estas apps contêm o potencial para modificar a relação médico-doente de forma radical. Pela primeira vez o doente pode ser o primeiro a ter acesso a resultados de parâmetros relevantes para a sua “saúde” sem intervenção do médico. Terá capacidade para compreender a informação que lhe está a ser dada? Para perceber quando deve contactar um profissional de saúde? Muitas destas apps são promovidas com o argumento de que o médico terá menos trabalho. Mas será mesmo assim? Não haverá mais situações de “falsos positivos” e de preocupações desnecessárias que requerem uma consulta para serem resolvidas? E, neste caso, a batalha contra o sobretratamento parece estar perdida…

Qual é o valor destas apps para a saúde? E como podemos saber quais funcionam? A sua efetividade é muito difícil de determinar. Praticamente não existem ensaios aleatorizados de qualidade que procurem demonstrar a robustez dos resultados que aparecem nos anúncios. Um ensaio recente, sobre a influência destas tecnologias na perda de peso em adultos obesos, mostrou que o grupo que não teve acesso à tecnologia perdeu mais peso (1).

A demonstração do custo-efetividade é ainda mais difícil. Porém, as empresas que desenvolvem estas tecnologias, naturalmente, querem ver o seu negócio florescer. E vão querer que os prestadores de saúde (SNS, seguradoras, ou outros) recorram aos seus produtos. Em vez de se ter um médico a dizer ao doente que deve fazer mais exercício físico, tomar a medicação, medir o nível de açúcar no sangue ou beber mais água, podemos ter um médico a dizer a um doente para descarregar uma app para o seu smartphone e seguir as instruções da Dra. Siri ou da Dra. Cortana.

A regulação destas tecnologias está na sua fase inicial. A Food and Drug Administration (2) dos Estados Unidos e o National Health Service (3) inglês já deram alguns passos nesse sentido, embora com abordagens diferentes. Nos Estados Unidos, pretende-se regular as apps que transformam os dispositivos onde estão instaladas em dispositivos médicos ou acessórios para dispositivos médicos. Em Inglaterra, o NHS promove as apps que considera benéficas.
Podem estes resultados ser aproveitados para Portugal?

Não é o termos apps que nos monitorizam 24 horas por dia e que nos dizem o que fazer “bem” que nos vai tornar mais saudáveis. Mas precisamente por querermos ser mais saudáveis é que este é um mercado que vale muito, muito dinheiro.

(1) Jakicic JM, Davis KK, Rogers RJ, King WC, Marcus MD, Helsel D, Rickman AD, Wahed AS, Belle SH. Effect of Wearable Technology Combined With a Lifestyle Intervention on Long-term Weight LossThe IDEA Randomized Clinical Trial. JAMA. 2016;316(11):1161-1171. doi:10.1001/jama.2016.12858
(2) US Food and Drug Administration. Mobile medical applications. http://www.fda.gov/MedicalDevices/DigitalHealth/MobileMedicalApplications/default.htm
(3) NHS Choices. Health apps library. http://www.nhs.uk/Pages/healthappslibrary.aspx

Céu Mateus

(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)