“A inteligência artificial tem potencial para gerar uma farmácia comunitária ‘aumentada’” 83

“Atualmente, muitas das discussões e encontros a nível nacional sobre aplicação de soluções/ferramentas de Inteligência Artificial (IA) situam-se no campo das possibilidades e não da implementação”, declara, ao NETFARMA, Mara Guerreiro, professora associada de Farmácia Clínica na Egas Moniz – Cooperativa de Ensino Superior e responsável pelo grupo de investigação em saúde e educação digital do CiiEM – Egas Moniz Center for Interdisciplinary Research, acrescentando que “o potencial da IA tem sido explorado em intervenções dirigidas às pessoas em contexto de saúde (como automonitorização da saúde); aos farmacêuticos e suas equipas (gestão da terapêutica medicamentosa, como propostas de ajuste personalizado de doses, interações medicamentosas); e na área da gestão (como cadeia logística)”.

Créditos: Portal Egas Moniz – Cooperativa de Ensino Superior

Não havendo um mapeamento nacional sistematizado, “é difícil dar uma resposta concreta sobre a adoção destas tecnologias digitais na prática”, continua a investigadora.

E se quisermos comparar Portugal com aquilo que se faz ‘lá fora’, Mara Guerreiro reforça que “apesar de não haver um mapeamento exato do que se faz atualmente no País, não demos ainda alguns passos que já foram tomados noutros países”. Neste sentido, dá como exemplo “o estabelecimento de farmácias comunitárias no metaverso, como foi feito na Suécia em março de 2022. Sendo que o metaverso recorre a tecnologias como IA, realidade aumentada, realidade virtual e conectividade da rede 5G. Ao mesmo tempo importa considerar que a legislação de cada país pode colocar obstáculos ao desenvolvimento de algumas iniciativas”.

Olhando para a aplicação da IA na área da saúde de um modo mais lato, “muitos países estão a avaliar a implementação de IA nas reformas e modernização dos sistemas de saúde pública, garantindo maior eficiência e acessibilidade, além da proteção dos dados dos cidadãos”, declara Ema Paulino, presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF).

A Estónia, por exemplo, “destinou um por cento do seu PIB para a reforma da infraestrutura de dados de saúde e atualmente todos os cidadãos têm um registo único de saúde – digital health record (DHR). Esta é também a ambição do governo britânico apresentada no documento ‘Preparing the NHS for the AI Era: A Digital Health Record for Every Citizen’”, acrescenta a responsável.

Quanto a Portugal, a farmacêutica refere que “operacionalizar o Registo de Saúde Eletrónico Único (RSEu) será muito importante para a dinâmica entre sistemas e determinante para a saúde pública, com o contributo por parte das farmácias, enquanto agentes que alimentam o registo e a comunicação entre profissionais de saúde”.

 

O que é (mesmo) a IA?

Quando falamos de IA, referimo-nos a um conjunto vasto de tecnologias que genericamente se podem agrupar, como aponta João Paulo Cabecinha, administrador executivo da Glintt Global, responsável pela Glintt Life – área Farmácia em Portugal, em:

  • Machine Learnig, incluindo redes neuronais e Deep Machine Learning.
  • Algoritmos preditivos de IA e aceleradores de hardware.
  • Processamento de linguagem natural, incluindo reconhecimento, análise e geração de voz e texto e imagem.

Estas tecnologias de IA “têm um potencial tremendo quando aplicados no contexto dos cuidados de saúde e podem ser um poderoso aliado da farmácia comunitária no desempenho de suas funções assistenciais”, salienta João Paulo Cabecinha.

Assim sendo, exemplos de soluções que podem potenciar e muito os serviços farmacêuticos, que estão a ganhar um protagonismo crescente na atividade da farmácia, ainda de acordo com administrador executivo, são:

  • Diagnóstico de afeções clínicas ligeiras.
  • Acompanhamento de doentes crónicos e desenho de padrões de risco.
  • Antecipação de doenças sazonais.
  • Medicação personalizada fazendo uso conjugado de IA e Farmacogenómica.
  • Utilização de assistentes virtuais para melhorar a interação com os utentes”.

Mas também como em qualquer setor de atividade não deverá ser descurado o seu potencial para uma gestão mais eficiente em diferentes domínios.

Mais uma vez, João Paulo Cabecinha indica algumas situações:

  • Automatização do serviço ao cliente: “Chatbots e sistemas telefónicos com IA ativada por voz para responder a perguntas e permitir pesquisa por voz, libertando a equipa para resolver questões mais complexas e alargando o horário de atendimento ao cliente.”
  • Gestão da relação com o cliente (CRM): “Analisar e prever o comportamento de compra dos clientes, gerindo campanhas e propostas comerciais.”
  • Gestão de compras e stocks” “Melhorar a capacidade de analisar de forma permanente condições comerciais e otimizar stoks com previsão dinâmica de procura.”
  • Marketing e conteúdos: “As ferramentas de IA generativa podem ajudar na criação de conteúdos para alimentar uma comunicação regular com os clientes.”
  • Cibersegurança: “Identificação de forma autónoma padrões de atividade invulgares gerindo notificações e propondo propostas de atuação.”

 

As potencialidades para as farmácias comunitárias

As farmácias comunitárias têm sido uma referência na transformação digital ao serviço das pessoas. “Sem receios, mas dando passos seguros, a ANF está a equacionar soluções que permitam continuar a posicionar as farmácias enquanto referências na adoção das novas tecnologias, incluindo a IA”, revela Ema Paulino.

Segundo a responsável, “para as farmácias comunitárias, as potencialidades da IA, para já evidentes, são de ganhos em eficiência ao nível da gestão operacional das farmácias, como, por exemplo, na gestão de encomendas. No entanto, a utilização de IA poderá também impactar na qualidade da prestação de cuidados, na intervenção e aconselhamento farmacêutico, através, por exemplo, da melhor gestão da informação técnico-científica que suporta a prática profissional”.

Em suma, “a inteligência artificial tem potencial para gerar uma farmácia comunitária ‘aumentada’, acelerando a sua eficiência e de forma a libertar recursos para atividades de valor acrescentado para as pessoas; e vai potenciar seres humanos aumentados”, ou seja, melhores profissionais, mais rápidos e efetivos na sua intervenção na jornada de saúde das pessoas”, sintetiza Ema Paulino.

Quanto à gestão operacional, a IA e a algoritmia preditiva “podem permitir às farmácias melhorar a gestão de stock e de encomendas ao aumentar a capacidade de prever e de antecipar as necessidades da comunidade onde se inserem, libertando tempo aos profissionais para outras tarefas e recursos financeiros para outras atividades de valor acrescentado”.

Já ao nível da gestão da informação técnico-científica, as potencialidades, ainda segundo a dirigente da ANF. “são imensas. A investigação clínica gera um volume muito grande de informação, que se atualiza a cada dia. É muito difícil para qualquer profissional de saúde absorver toda esta informação de forma que a mesma seja considerada na sua prática diária. As ferramentas de IA poderão ajudar os profissionais a ‘digerir’ e a sumarizar o imenso universo de informação para que possam, mais rapidamente e de forma segura, entregar esta informação em benefício do utente”.

A título de exemplo, Ema Paulino indica que “nas pessoas polimedicadas, a IA pode suportar o farmacêutico na identificação mais célere de interações medicamentosas ou contraindicações, ajudando a reduzir a iatrogenia medicamentosa e outros problemas relacionados com medicamentos. A área da gestão de pessoas que vivem com doença crónica é, aliás, um exemplo onde a IA pode dar suporte ao farmacêutico para melhor monitorizar e controlar a doença”.

A utilização de ferramentas de IA associada à quantidade de informação que é gerada nas farmácias pode ainda ser muito útil para antecipar necessidades e riscos em saúde. Deste modo, a farmacêutica especifica que a “IA, através da análise de padrões de consumo de medicamentos ou de sintomas, pode ajudar o farmacêutico a fazer o despiste de patologias ou detetar pessoas em risco de diabetes, por exemplo, ou seja, permite atuar na prevenção da doença”.

Também para  Isabel Cortez, presidente da Associação de Farmácias de Portugal (AFP), a IA “será útil no nosso quotidiano com o seu contributo de inovação tecnológica, potenciando a eficiência, produtividade, qualidade e segurança dos serviços prestados aos cidadãos”.

Neste sentido, em relação ao que já foi referido, complementa que “a inteligência artificial vai permitir realizar, por exemplo, videoconferências com os utentes, reforçando orientações de saúde e o acompanhamento de pessoas que vivem em áreas mais remotas ou que têm dificuldade de deslocação. E deverá também facilitar a formação contínua e a atualização indispensável da informação disponível aos farmacêuticos”.

 

O lado ‘negativo’

“A IA é apenas uma ferramenta e as farmácias devem garantir que as decisões e processos relacionados com o atendimento ao utentes assentam em dados rigorosos e em evidências científicas confiáveis”, ressalva  Isabel Cortez, acrescentando que “além disso, a IA não deve nunca ser utilizada para substituir a interação humana que é o elemento diferenciador por excelência do serviço de saúde em farmácia”.

Por outro lado, as farmácias precisam de “estar cientes dos desafios éticos e de privacidade de dados associados à implementação da IA e garantir que as decisões baseadas em IA sejam justas e transparentes”.

Além disso, como destaca ainda responsável da AFP, “a IA pode sublinhar assimetrias financeiras e de acesso à tecnologia e à informação”.

Por seu turno, Ema Paulino sublinha que “não só em Portugal, como no mundo, as instituições de saúde estão a fazer uma adoção cautelosa destas ferramentas na sua prática profissional e as farmácias comunitárias não serão exceção.  Devemos aproveitar as potencialidades da IA, mas de forma muito estruturada e validada, com total segurança para os profissionais de saúde e para as pessoas”.

Neste sentido, à semelhança de AFP, a dirigente da ANF enfatiza que “há princípios legais sobre a utilização de dados e há também princípios éticos sobre os fins para os quais é utilizada a IA.  Haverá neste âmbito riscos, mais do que um lado negativo”.

 

Bases de dados de grandes dimensões e competências digitais

Os desafios que as farmácias enfrentam para serem mais ‘IA friendly’ são, efetivamente, múltiplos “e incluem questões ligadas ao acesso a dados, competência em saúde digital das equipas, e adaptação dos processos de trabalho. Por exemplo, algumas soluções de IA com capacidade de predição e personalização exigem bases de dados de larga dimensão”, expõe Mara Guerreiro, acrescentando que “o acesso a estes dados é muitas vezes limitado por questões de privacidade, regulamentação e fragmentação dos sistemas”.

Um outro desafio, ainda de acordo com a investigadora, “é a necessidade de competências em saúde digital para os farmacêuticos e as suas equipas. Atualmente, muitos profissionais possuem competências limitadas em saúde digital, tornando a transição para uma prática ‘IA friendly’ mais lenta”.

Neste sentido, Mara Guerreiro defende que “a formação contínua e a inclusão da saúde digital nos currículos académicos das ciências farmacêuticas são cruciais para ultrapassar este obstáculo”.

Isabel Cortez concorda e, deste modo, explica que “as farmácias já estão a começar a integrar a IA no seu funcionamento. Mas será um caminho de adaptação e de evolução tecnológica que carece de investimento financeiro e em formação de equipas. No entanto, é um caminho que estamos a percorrer com confiança e tranquilidade, cada farmácia ao seu ritmo”.

Por isso, “a realidade da IA não poderá continuar a ser ignorada pelas universidades, necessitando estas, além das indispensáveis infraestruturas tecnológicas, de um corpo docente atualizado e preparado para saber integrar a IA, de forma crítica e estruturada, nas suas aulas e currículos”, acrescenta a dirigente da AFP.

 

As soluções (já) ao alcance das farmácias

As farmácias “têm liderado os processos de transformação digital, desde cedo, e estão a surgir ensaios, que ainda não estão massificados, mas que certamente irão, a seu tempo, ser implementados”, declara Ema Paulino

“Ainda estamos numa fase muito embrionária, em que a prioridade é o desenvolvimento de provas de conceito, onde o foco é demonstrar a capacidade e estabilidade das soluções tecnológicas para cumprirem com as expetativas”, reforça João Paulo Cabecinha, especificando que uma das primeiras áreas de intervenção tem sido, efetivamente, “os chatbots para atendimento que permitem libertar os colaboradores da farmácia para outras tarefas e alargar o horário de funcionamento através de canais digitais”.

Ema Paulino acrescenta que “temos algumas ‘formas’ de IA implementadas nos sistemas, alguns bons exemplos de aplicação em áreas como a saúde pública (como é o caso do HICORR, para antecipação de sintomas gripais e epidemias na comunidade), e o recurso a ferramentas de business intelligence, mas queremos ir mais longe na integração de IA”.

 

Modelos epidemiológicos de monitorização de eventos

Na verdade, no programa eleitoral da sua lista, Ema Paulino referia já, em alguns pontos, o uso da IA. “Aquilo a que nos propusemos fazer foi a integração de tecnologias de inteligência artificial e algoritmos, que potenciem a gestão operacional das farmácias e eficiência dos serviços prestados, como por exemplo na gestão de encomendas e gestão da informação técnico-científica”, especifica a responsável, acrescentando que “estamos a apostar em modelos epidemiológicos de monitorização de eventos, por exemplo, permitindo antecipar o início e o pico das epidemias de gripe na comunidade, com base na informação diariamente produzida pelas farmácias”.

Neste sentido, a farmacêutica revela que está, ainda, “em ensaio e validação um modelo que tem a capacidade de organizar a informação sobre os medicamentos, a informação que está disponível no resumo das características do medicamento (RCM), que torna mais fácil e ágil o acesso a esta informação na prática diária pelo farmacêutico”.

 

Como ser uma farmácia com soluções de IA

Uma farmácia que queira hoje modernizar-se, nomeadamente ao nível da implementação de soluções de IA tem de “identificar de forma clara quais são as suas prioridades e depois selecionar um parceiro tecnológico”, aconselha João Paulo Cabecinha.

Para o administrador executivo da Glintt Global, uma farmácia do futuro, que adote este tipo de soluções, “vai ser uma farmácia com uma capacidade exponenciada de servir a sua comunidade e com uma intervenção ainda mais relevante na prevenção e promoção dos cuidados de saúde”.

 

Pode a IA substituir o farmacêutico?

Um dos principais problemas com que se debatem as farmácias comunitárias “é a escassez de recursos humanos, agravada pela necessidade de assegurar um cada vez maior número de serviços que requerem uma intervenção técnica qualificada que só pode ser assegurada de forma humana”, declara João Paulo Cabecinha. Neste contexto, a “IA vai permitir à equipa da farmácia ganhar tempo, melhorar a qualidade e segurança da sua intervenção”, acrescenta.

Já Isabel Cortez é perentória: “claro que não vai substituir. A IA não deve nunca ser utilizada para desumanizar o atendimento ao cliente e deve sim constituir uma ferramenta de suporte a um atendimento mais personalizado e qualificado”.

Em suma, como declara a Ema Paulino, a IA “pode ajudar na eficiência e produtividade da atividade do farmacêutico, aumentado a eficiência de algumas tarefas e o valor entregue pelo farmacêutico noutras atividades. A IA permitirá, acima de tudo, suportar o serviço do farmacêutico para que gere mais valor e libertar o seu tempo para que o dedique à relação com a pessoa, aspeto tão fundamental e tantas vezes descrito na literatura como afetando a qualidade dos cuidados quando não existe”.

O farmacêutico é, desta maneira, “muitas vezes o primeiro contacto da população com cuidados de saúde e é a sua intervenção profissional e na relação de confiança com a população que se diferencia”, conclui a responsável da ANF.