“A pessoa que vive com doença pode sair prejudicada” com a greve dos farmacêuticos 793

A pergunta é feita por Pedro Amaro, diretor técnico da Farmácia Nazareth, em Coimbra: “Se os produtos não nos chegam, o que vai acontecer?”. A resposta parece, para já, indefinida ou, provavelmente, associada ao seu local de sempre, o hospital. Desde dia 2 de janeiro que o Sindicato Nacional dos Farmacêuticos (SNF) decretou uma greve, por tempo indeterminado, ao serviço de entrega de medicamentos hospitalares em proximidade.

Instituído pelo Decreto-Lei n.º 138/2023, de 29 de dezembro, o serviço entrou em vigor no dia seguinte, apesar de a sua implementação estar condicionada à publicação de uma lista de fármacos, a ser aprovada por despacho, e que contemple aqueles que serão abrangidos pelo regime. Ou seja, este serviço não se encontra ainda em vigor, apesar de, como é sabido, a dispensa já existir em variadas farmácias a nível nacional.

Mantendo-se a forma de luta, que procura chamar a atenção para, entre outros obstáculos, a falta de recursos humanos e a sobreposição de tarefas para a execução do serviço, “as pessoas vão ter de ir ao hospital” e volta-se “à estaca zero”. Para o farmacêutico, a greve especificamente dirigida à dispensa em proximidade “interfere num sistema que está agora a nascer”. “No fim da linha”, as farmácias comunitárias pouco podem fazer, diz.

Tal como Pedro Amaro, a farmacêutica Dulce Fonseca lembra o direito constitucional da greve e está solidária com a situação laboral dos colegas hospitalares. Contudo, acredita que “quem vai sentir o transtorno maior é o utente”, perante um hipotético “interromper do ciclo” de dispensa que “já estava a ser testado em continuidade”.

A diretora técnica da Farmácia Jordão Pedrosa, no Vale da Amoreira, em Setúbal, admite que nas duas últimas entregas, já em 2024, “o prazo não estava exatamente a corresponder” ao dos doentes. Não sendo capaz de associar os casos à greve, admite ainda assim não ser comum. “Esta medicação é primordial” para a população, pelo que aponta ser necessário “minimizar o impacto” da greve perante uma medida com largos benefícios.

Greve incide sobre serviço “voluntário”

Até que a lista de medicamentos destinada à dispensa em proximidade seja aprovada, “a prestação do serviço como o conhecemos continuará a ser de adesão voluntária e alicerçado pela disponibilidade e compromisso dos farmacêuticos hospitalares e comunitários com os seus utentes”, explica Carolina Mosca, presidente do Colégio de Especialidade de Farmácia Comunitária da Ordem dos Farmacêuticos (OF).

Confrontada com a possibilidade dos farmacêuticos comunitários poderem sair prejudicados na sua pretensão de maior responsabilidade e presença no processo, a responsável vira a questão para a própria população: “é a pessoa que vive com doença que pode sair prejudicada por esta greve”. Sem esquecer que “neste regime temos doentes com patologias como a esclerose múltipla, certos tipos de cancro, doenças intestinais e do sangue, ou os tomados por pessoas com transplantes ou com VIH/sida”.

“Os Serviços Farmacêuticos Hospitalares, de acordo com as funções atribuídas e a sua capacidade, exercem a sua atividade tendo como objetivo essencial o cidadão em geral e a pessoa que vive com doença, em particular”, garante. E reforça que “a sua missão consiste em garantir que os medicamentos, dispositivos médicos e outros produtos farmacêuticos são eficazes, seguros e custo-efetivos e estão disponíveis quando necessários”.

A farmacêutica comunitária destaca as potencialidades deste serviço de acesso próximo, alicerçado numa “dispensa garantida com qualidade”, na redução de custos para as famílias, “traduzida pela redução do custo de idas ao hospital e o valor económico do tempo despendido na viagem e no tempo que [os cidadãos] esperam pelos medicamentos nos serviços do hospital”. A redução de faltas e ausências ao trabalho e a promoção da adesão à terapêutica são relevantes, estimando-se que “as pessoas que vivem com doença despendem cerca de 185 milhões de euros por ano só para levantar os medicamentos” na Farmácia Hospitalar.

Com a consolidação deste regime, “urge a necessidade de os Serviços Farmacêuticos Hospitalares serem dotados de todas as condições para poderem proceder aos ajustes necessários para responder a todos os doentes que desejem receber a sua medicação”. Para Carolina Mosca, “a greve não pode ser uma forma de protesto ao novo serviço”, pelo que crê não o ser, “já que foi convocada ainda antes de sair o novo diploma”. De qualquer das formas, espera “que tenha o menor impacto possível na vida das pessoas”.

“Incontestáveis” ganhos para a população

Por sua vez, Ema Paulino, presidente da Associação Nacional das Farmácias (ANF), demonstra compreensão relativamente à “importância de valorização da profissão, designadamente dos farmacêuticos hospitalares”. Ainda assim, entende que “todos devem estar envolvidos e empenhados em soluções que melhor sirvam a população”, tratando-se de “uma medida há muito defendida pelas pessoas” e testada nas farmácias.

A farmacêutica deixa claro que “são incontestáveis os ganhos significativos em vários estudos, para os utentes e para a comunidade em geral, da dispensa em proximidade”. Não só “conduz a uma redução de tempo perdido, de custos de deslocação e também de absentismo, com maior conforto e segurança, permitindo reforçar as condições para o sucesso terapêutico”, como é uma medida que “afeta todos positivamente”.

Neste cenário, as farmácias comunitárias estão “totalmente disponíveis para, num trabalho conjunto com o SNS e estreita colaboração com os colegas das farmácias hospitalares, responder às necessidades dos utentes”.

Nova tentativa perante indiferença do Governo 

Depois de várias greves inéditas na sua história, os farmacêuticos hospitalares continuam sem se conseguir sentar à mesa de negociações com o Ministério da Saúde. Por isso, acredita o farmacêutico hospitalar João Ribeiro, esta é uma forma diferente de chamar a atenção para os problemas sentidos por estes profissionais, depois de meses de silêncio por parte dos governantes.

“Foi um caminho que se nos afigura possível, com a consciência de que os últimos prejudicados, tal como em todas as greves, são os doentes”, refere, para deixar a nota de que este caminho apenas se mostrou necessário “face à total ausência de resposta por parte da tutela”.

Falando apenas a título individual e profissional, e não como presidente do Colégio de Especialidade de Farmácia Hospitalar da OF, João Ribeiro nota não existirem “as condições subjacentes [para um serviço exequível], nomeadamente a existência de um sistema informático partilhável entre os pontos de proximidade e os pontos de dispensa”. Os colegas comunitários, considera, não saem prejudicados, uma vez que a medida ainda não se encontra implementada.

O Netfarma procurou contactar, sem sucesso, o presidente do Sindicato Nacional dos Farmacêuticos (SNF), Henrique Reguengo.