Afinal, o que é que importa na Saúde em Portugal? 2007

No contínuo de notícias, números e opiniões, falta clareza estruturada na forma como devemos analisar e avaliar o nosso sistema de saúde e os seus resultados. Por motivos psicológicos e económicos, a nossa atenção é constantemente solicitada para uma panóplia de problemas graves e urgentes: grávidas reconduzidas, urgências fechadas, greves, utentes sem médicos de família, listas de espera intermináveis, inteligência artificial, saúde digital.

No entanto, seguir o noticiário só nos permite atuar tarde em questões muitas vezes terminais, com três grandes implicações. Primeiro, como um bombeiro, o nosso foco é dirigido aos ardentes sintomas, distraindo-nos das suas insidiosas causas. Segundo, a nossa atenção é quase exclusiva para o domínio da prestação de cuidados de saúde. Apesar de existirem vários grupos de determinantes da saúde, como os fatores socioeconómicos ou os comportamentais (e.g., atividade física), a prestação de cuidados representa menos de 20% da responsabilidade no estado de saúde das pessoas1 – e 98% da despesa em Portugal2. Terceiro, a perene negligência da prevenção da doença e promoção da saúde, que não tendo palco mediático, também não tem metas, nem intervenções substanciais, face ao potencial dos seus papéis.

Por conseguinte, a complexidade e instabilidade que transparece à população, confirmada pelas suas experiências, reflete uma falha fundacional dos decisores em saúde: a falta de planeamento. Seguindo as etapas deste processo, com um adequado diagnóstico de situação, dimensionando os principais problemas e determinantes de saúde, permitiria a definição de prioridades de atuação e os seus respetivos objetivos. Bem realizado poderia permitir o reconhecimento de ameaças emergentes e equilíbrios perto da rutura, cujas consequências poderiam ser evitadas com intervenções dirigidas.

Em Portugal, o único instrumento de planeamento que existe a nível nacional é o Plano Nacional de Saúde 2021-20303, que por ironia ou para alarmante anacronismo, só foi homologado em Conselho de Ministros a meio de 2023. No seu diagnóstico de situação, identifica os principais problemas de saúde, baseando na carga (ou burden) de doença dos mesmos. Sumariamente, esta representa a soma dos anos de vida perdidos (por morte precoce) e da qualidade de vida perdida (em vida) pela existência de um ou vários problemas de saúde, sendo quantificada em DALY (disability-adjusted life years).

Figura 1 – Dez principais causas de morte e incapacidade (DALY) em Portugal, em 2019, e percentagem de variação relativamente a 2009 (conforme identificados e ordenados no PNS 2021-2030)3,4

No entanto, os objetivos apresentados no PNS não correspondem, em natureza ou conteúdo, às necessidades elencadas pelo mesmo3. Por um lado, mais de dois terços dos objetivos de saúde fixados (19 de 27) referem-se a taxas de mortalidade padronizada – por definição, insuficientes na caracterização da saúde de uma população. Por outro, os problemas de saúde sobre os quais os objetivos incidem não correspondem às maiores necessidades identificadas. Negligenciam-se, por exemplo, a dor lombar e a depressão, em detrimento da tuberculose e da SIDA, com muito menor carga de doença. Além do mais, não representam os principais determinantes de saúde.

Não sendo absolvente, a melhor justificação para um contraste tão marcado entre as necessidades reconhecidas e os objetivos elencados pelo PNS é a falta de dados e informação, de qualidade e atualizados, sobre aspetos mais granulares da saúde, como o próprio documento reconhece. Não só não conseguimos avaliar o desempenho relevante do sistema, nem responsabilizar com base nos seus resultados, como também não conseguimos dirigir os recursos e a nossa atenção no que mais importa. Limitando os objetivos àquilo que conseguimos medir, compensamos os prestadores de cuidados com base no número de consultas e cirurgias, e não com os níveis de saúde da população. Fique descansado o leitor na certeza de que também aqui não estão a ser feitos esforços para resolver ou minimizar esta limitação.

Fazendo referência à inexorável universalização do modelo das Unidades Locais de Saúde como formato de único de prestação de cuidados de saúde pelo Serviço Nacional de Saúde, deixo só a nota (que fomentaria todo um outro comentário) que não será por si só suficiente. Na ausência de um sistema de recolha de dados dirigidos aos problemas e determinantes de saúde mais relevantes, não é possível progredir para uma melhoria efetiva da saúde das populações, pela mera transição para um modelo de gestão conjunto e de capitação.

Assim, tão nítida fica a falta de planeamento que não constam metas sobre o atendimento atempado, nem sobre o preenchimento dos mapas das equipas de urgência, nem sobre outras tão badaladas problemáticas que nos “afligem” continuamente. Mesmo não podendo não ser essas as prioridades de saúde que mais beneficiarão a população, para efeitos mais políticos, poderia defender-se a sua inclusão nos resultados a atingir.

Nesta transição, a visão compreensiva e priorizada dos problemas, bem como uma capacidade analítica para escolher e monitorizar as intervenções de saúde, conforme tão bem compete à Saúde Pública, terão de ser o ponto de partida para uma restruturação integra na sua ambição de zelar pela população.

Por último, se é verdade que o mediatismo é incentivado pela psicologia humana, este não pode saturar o pensamento de um crítico ou decisor em saúde. Enquanto o planeamento não estiver no centro, a saúde dos portugueses também não estará.

Referências

  1. Hood CM, Gennuso KP, Swain GR, Catlin BB. County Health Rankings: Relationships Between Determinant Factors and Health Outcomes. American Journal of Preventive Medicine. 2016;50(2):129-135. doi:10.1016/j.amepre.2015.08.024
  2. Portugal: Country Health Profile 2021 | READ online. oecd-ilibrary.org. Accessed October 4, 2023. https://read.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/portugal-country-health-profile-2021_8f3b0171-en
  3. Direção-Geral da Saúde. Plano Nacional de Saúde 2021-2030. Accessed September 13, 2023. https://pns.dgs.pt/files/2022/12/PNS2021-2030_FINAL-para-Edicao.pdf
  4. The Institute for Health Metrics and Evaluation. Portugal. Portugal | The Institute for Health Metrics and Evaluation. Accessed September 11, 2023. https://www.healthdata.org/research-analysis/health-by-location/profiles/portugal

José Miguel Diniz
Programa Doutoral de Ciência de Dados de Saúde, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Universidade do Porto
CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Universidade do Porto
AI4Health, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Universidade do Porto
NOVA Health Economics and Management Knowledge Center, NOVA School of Business and Economics
Unidade de Saúde Pública Lisboa Central, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo