As incertezas do Orçamento do Estado 2023 para o sector do medicamento 1025

Todos os anos há a curiosidade de saber quais os planos do Governo para a área da saúde que recebem mais atenção no Orçamento do Estado. A apresentação do Orçamento do Estado para 2023 não foge a esta regra. O primeiro elemento a registar é, desde logo, a verba disponibilizada para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). De acordo com o Relatório do Orçamento do Estado para 2023, os fundos disponibilizados ao SNS voltam a subir de forma assinalável face ao ano anterior, e o valor atribuído para 2023 está acima da estimativa de despesa final de 2022. Ou seja, como ponto de partida, há uma disponibilidade orçamental para reforço das verbas do SNS.

Menos claro é como serão usadas essas verbas e se serão suficientes para todas as despesas esperadas, pois existem vários elementos de pressão para maior despesa. Por um lado, a óbvia necessidade de revisitar as remunerações e as condições de trabalho dos profissionais de saúde irá traduzir-se em maior despesa para se ter a mesma atividade assistencial. Por outro lado, a inflação geral, e dentro desta a subida de preços de energia e de outros bens e serviços usados pelo SNS irão igualmente gerar mais despesa para a mesma atividade que seja desenvolvida. E se o primeiro elemento de pressão sobre a despesa, remunerações dos profissionais de saúde, é influenciada e decidida por quem gere o SNS, a segunda fonte de pressão é essencialmente externa. Não há grande capacidade de controle sobre esses elementos de inflação. Como terceiro elemento, tem-se a entrada em funcionamento da Direção Executiva do SNS (DE-SNS), que numa primeira fase de mudanças e reorganizações que venha a introduzir poderá resultar em maior despesa no imediato, mesmo que a prazo ocorra menor despesa.

Daqui resulta que o mero argumento de despesa pública em saúde, por estes motivos poderá não resultar em melhorias significativas no funcionamento do SNS, visíveis para os cidadãos. Assim, apesar do reforço do orçamento do SNS, as incertezas associadas à inflação fazem com que o problema da falta de financiamento que tem sido apontado ao SNS possa não ficar resolvido de forma permanente.

No campo específico do medicamento, há este anos diversos anúncios, cuja tradução prática necessitará de empenho técnico, financeiro e político do Governo. Alguns destes anúncios não são novos e a possibilidade de se ficarem pelo texto do Orçamento do Estado são elevadas. De uma forma global, há uma tensão em se procurar controlar a despesas com produtos farmacêuticos e ao mesmo tempo anunciar-se maior acesso, logo maior uso de medicamentos e consequentemente mais despesa do SNS (e dos doentes) com os medicamentos que venham a ser prescritos. Navegar entre estes dois aspectos que quase se contradizem irá exigir atenção e capacidade de decisão. Parte dessa atenção deverá (?) vir da nova Direção Executiva do SNS: um diferente padrão de prescrição, nomeadamente nos medicamentos de maior impacto orçamental, poderá estar presente na atuação da DE-SNS.

No controle da despesa com medicamentos, em ambulatório, há uma ambiguidade presente. Ora se pretende usar a concorrência entre as diversas companhias farmacêuticas presentes no mercado nacional, quando se fala da concorrência proporcionada pelos comercializadores de medicamentos genéricos, ora se pretende usar a fixação administrativa de preços e a elaboração de acordos globais com a indústria farmacêutica para delimitação da despesa pública. Dificilmente será possível seguir as duas vias ao mesmo tempo. Ou se procura regular administrativamente preços e consumos para controlar a despesa, ou se procura que seja a concorrência entre empresas via preço a criar as condições para menor despesa.

Não é só no controle da despesa pública em medicamentos que surgem dificuldades de compreensão sobre o que o Governo realmente pretende fazer. Uma linha de evolução que, do ponto de vista do serviço ao cidadão, aparenta fazer sentido é a possibilidade de renovação de medicação crónica ser realizada por um farmacêutico devidamente habilitado para o fazer. Só que da (boa) intenção à prática vai um caminho de definições a percorrer. Definições essas em termos de organização e de pagamento. Na parte de organização, será necessário definir em que condições pode ser realizada essa renovação, que protocolos têm de existir entre médico acompanhe o doente crónico e o farmacêutico, que fluxos de informação devem ser criados, a renovação da medicação crónica numa farmácia implica necessariamente a dispensa dos medicamentos em causa por essa farmácia, etc. É pouco provável que seja apropriado um sistema em que um doente crónico entra numa farmácia qualquer, pede a renovação da sua medicação crónica, o farmacêutico presente faz essa renovação e termina aí o processo.

Depois de estabelecido o processo da renovação da medicação crónica, será preciso definir os fluxos financeiros associados. Se um farmacêutico presta um serviço de renovação de medicação crónica deverá ser remunerado por o ter prestado. E então é preciso saber quem paga a quanto a quem. Se é legítimo que o farmacêutico receba uma remuneração pelo serviço prestado, esta deverá ser paga pela unidade de saúde que deixa de fazer essa renovação da medicação, ou deve ser um pagamento direto do cidadão ao farmacêutico, ou deve ser um pagamento ao farmacêutico (à farmácia) por parte da ACSS (enquanto entidade pagadora do Serviço Nacional de Saúde). E se o protocolo que deverá ser estabelecido entre cuidados de saúde primários e farmácias implicar custos adicionais para a unidade de saúde, vai estar a gestão do SNS disponível para essa despesa? Só porque o cidadão pode ter a sua vida facilitada não decorre automaticamente que o sistema de saúde se consiga organizar para que tal suceda, nem é claro que os custos de montar um processo seguro, eficaz e transparente sejam menores que os benefícios para o cidadão. Mais uma vez, diferentes possibilidades existem para definir os fluxos financeiros que estarão associados a esta medida. É de esperar que exista uma análise clara dos custos e benefícios das opções disponíveis. A tentação de se vir a criar um grupo de trabalho que funcione de forma pro bono ou seja administrativamente determinado na sua composição vai estar presente. Na ausência de uma visão política clara quanto aos processos e aos pagamentos (despesa) a realizar, o resultado final será catalogado como “promessa adiada”.

O mero anúncio genérico de uma intenção raramente é suficiente para garantir a concretização dessa intenção. Para vários dos anúncios feitos de novas ideias para o sector do medicamento, esse será, a meu ver, o maior risco associado ao que está escrito (e previsto) no Relatório do Orçamento do Estado para 2023.

Pedro Pita Barros

BPI | Fundação “la Caixa” Professor of Health Economics – Nova School of Business and Economics