O ex-presidente do Hospital Santa Maria, Daniel Ferro, revelou que alertou o Governo para o impacto financeiro de tratar várias crianças com o medicamento recebido pelas gémeas luso-brasileiras e afirmou que o desconforto manifestado pelos médicos “é justificado”. Reconheceu ainda que, com a informação de que dispõe atualmente, teria tido “cautelas quintuplicadas” no acesso das crianças ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e defendeu que o circuito deveria ser aperfeiçoado.
Na comissão parlamentar de inquérito ao caso das crianças tratadas com o medicamento Zolgensma em Lisboa, em 2020, Daniel Ferro recordou, ontem, segundo a Lusa, que o hospital “não estava preparado para dar execução” a outras situações semelhantes depois de “pagar quatro milhões de euros” que não estavam previstos, referentes a outros dois tratamentos com o mesmo medicamento, no ano anterior.
O responsável indicou que a neuropediatra que acompanhava as gémeas luso-brasileiras em Lisboa, Teresa Moreno, avisou o Conselho de Administração para outras crianças portuguesas residentes no estrangeiro que poderiam ser elegíveis para o mesmo tratamento.
“Perspetivando-se mais do que dois [tratamentos], seria caso de tesouraria e orçamental. Quatro tratamentos significariam verbas que o hospital não tinha capacidade para suportar”, indicou, admitindo “estrangulamento da gestão financeira em 2019”.
Face ao exposto, o ex-presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) explicou aos deputados que pediu uma reunião à tutela para discutir o financiamento.
“Nas primeiras duas crianças que foram também tratadas, o hospital não foi ressarcido. Eu tive a informação do Governo, na altura, que o hospital iria ser reembolsado e que era uma decisão que seria discutida com a ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde). (…) O problema não ficou resolvido”, salientou na audição que durou duas horas.
Daniel Ferro pediu para se encontrar “um instrumento de financiar o tratamento em coerência com o que o Governo [PS] tinha decidido em 2018”, quando “assumiu o financiamento centralizado desta patologia”.
Em relação à carta redigida pelos neuropediatras do Santa Maria a contestar o tratamento, o responsável corroborou “o desconforto” manifestado dos clínicos.
“Para mim, é um sinal de desconforto (…). Como é possível estarmos a tratar doentes que, embora sejam cidadãos portugueses, vivem noutros países e vêm aqui para beneficiar deste tratamento, quando o Serviço Nacional de Saúde tem carências?”, interrogou.
Sobre se foi contactado pelo antigo secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, o antigo presidente do Santa Maria disse que o ex-governante não o contactou, mas sim o contrário, por causa do financiamento.
O ex-presidente do Santa Maria disse ainda que teve conhecimento do caso das gémeas nos dias 18 ou 19 de novembro de 2019 e que o tratamento foi “uma boa decisão do ponto de vista clínico”.
Acesso aperfeiçoado
Daniel Ferro admitiu ainda que “o que parece estar por detrás disto é uma coisa impensável. Com a informação que tenho hoje, teríamos tido cautelas. Não eram redobradas, eram quintuplicadas sobre esta situação, como é óbvio”.
O responsável esclareceu os deputados que a “situação podia ter sido enquadrada no sistema”, se tivesse sido feita uma análise “para poder ou não ser integrada” pelo então diretor clínico, Luís Pinheiro”, “se entendia que era uma sinalização”.
“Sendo um pedido de marcação de consulta, já me parece que não assistiria legitimidade. Não assistia legitimidade para pedir a marcação desta consulta, mas assistia legitimidade para encaminhar uma situação e sinalizar uma situação e o hospital tomar uma decisão”, indicou.
Sobre esse ponto de vista, “provavelmente o diretor clínico interpretou isto no sentido de uma mera sinalização, mas houve quem interpretasse isto como um pedido quase de interferência ou de ter que fazer esta consulta e, sobre esse ponto de vista, penso que há aqui, eventualmente, diferentes entendimentos”, realçou.
Daniel Ferro, no entanto, considerou que “foi correto” entender que era uma sinalização, que era o único caminho “que garantia a autonomia do médico relativamente a fazer ou a não fazer a consulta”.
“Penso que podia ser uma situação aperfeiçoada, corrigida, relativamente à desconformidade formal que ela encerra face à portaria”, que controla o acesso ao SNS, realçou.
Para o responsável, o documento “não é explícito” quando se trata de uma situação de alguém que está fora do SNS.
“Como entra nesta rede? Faz sentido uma pessoa que reside no Luxemburgo ter médico de família aqui? Deve inscrever-se sem ter médico de família para apreciar a sua situação? Eventualmente, sim. Isto não está definido e, quando uma coisa não está definida, posso entender que está correto e alguém entender que não está correto”, ressaltou.
O ex-presidente do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHULN) vincou que “a situação material justificava o acesso”, do ponto de vista formal.
“Se me perguntar o que é que, na altura, soube sobre esse detalhe sobre esse circuito, eu não acompanhei. Não sei. Isto é uma sugestão à distância, e uma sugestão à distância não é efetiva no momento”, disse, indicando era preciso era que essa sugestão ter surgido com o que podia ser enquadrado.
O médico assumiu também a decisão “relativamente à dispensabilidade” de algumas formalidades da portaria, “para tornar a situação de atendimento clínico mais imediata”.