Como pontes sobre águas turbulentas 1727

A maioria das minhas intervenções nesta coluna costuma pautar-se por uma defesa, em maior ou menor medida, da saúde mental, bem como da necessidade de ter uma estratégia sistémica e um mapa de implementação ambicioso que nos permita enfrentar a pandemia silenciosa. Num país onde um em cada cinco portugueses – neste momento, um em cada três será provavelmente mais realista – padece de alguma patologia desse foro, parece-me essencial tratar, uma vez mais, este tema. Por isso, lamento desde já desapontar aqueles que esperavam algo diferente: ainda não é desta!

Este assunto parece tão mais pertinente quanto recentemente assinalámos um ano desde que o primeiro caso da COVID-19 foi detetado em Portugal. Uma ocasião de dúbia celebração que nos faz refletir sobre aquilo que passámos ao longo deste ano. Da minha parte, e tendo contactado com um trabalho de Viktor Frankl[1] e outro de Sebastian Junger[2], gostaria de partilhar algumas notas que podem servir para fazer deste período de isolamento um período de crescimento. Faço-o com a crença profunda que ajudará a gerar a resiliência mental necessária para enfrentar a dureza deste inverno do nosso confinamento e, tanto quanto possível, abraçarmos prontamente a vida que inevitavelmente lhe sucederá.

Frankl, através da partilha da sua experiência íntima nos campos de concentração, bem como do conceito de logoterapia[3], desafia o leitor a encontrar um sentido de vida que não é um conceito abstrato. É, na verdade, uma condição essencial à sua sobrevivência, na medida em que permite ao indivíduo responder às situações que a vida lhe coloca, em vez de se rebelar contra ela. Nesse sentido, recupera o que Nietzsche terá famosamente dito: que “quem tem um porquê, suporta quase qualquer como”. Curiosamente, uma das maiores dificuldades com que nos temos confrontado prende-se com o facto de, quando separados dos outros por imposição das restrições necessárias à contenção da pandemia, nos depararmos com a ausência de noção sobre qual o sentido da nossa vida. Assim, o primeiro ponto de ordem será o de proceder a um trabalho de autoconhecimento de forma urgente e inadiável, que permita a determinação desse sentido e os benefícios que daí advêm.

Porém, e como John Donne eloquentemente o colocou e como estes tempos tornaram claro, nenhum homem é uma ilha. E não sou eu ou Mr. Donne apenas que o dizemos – são as inúmeras experiências relatadas por Junger nas suas observações, desde as tribos indígenas da América do Norte aos soldados que combateram no Afeganistão. Parece que, mesmo sujeitos a situações de enorme brutalidade como as guerras, há um desenvolvimento curioso quando irmãos de armas retornam a casa: veem removidos da sua vida os pilares nos quais a sua sobrevivência assentava – resumidamente, o espírito de camaradagem – e, não sentindo laços que os unam a esta vida a que voltaram mas na qual não se reconhecem, sofrem perturbações psicológicas de índole diversa. Assim, o sentido de comunidade merece particular atenção desde o ponto de vista individual ao das políticas públicas, porque, aquando do nosso desconfinamento (quando quer que este aconteça), muitos de nós seremos confrontados com esta nova exposição e, como olhos mal habituados a muita luz, iremos franzir antes de conseguirmos ver com clareza.

Este ponto, por sua vez, leva-nos à ressonância – à forma como, assim como um instrumento numa orquestra, temos a nossa própria frequência, mas esta se majora e se torna parte de algo maior quando aliada às de outros instrumentos. Um exemplo intuitivo será o ato de relembrar da sensação que é, no âmbito de uma cerimónia religiosa, civil, ou de algo tão prosaico quanto um jogo de futebol, entoarmos um cântico em conjunto. A sensação de pertença inerente, e a noção de que contribuímos para algo maior – mesmo que não o consigamos descrever – é uma experiência humana única cujo valor não deve ser descurado. Precisamos, por isso, de procurar, alimentar, e aprofundar as nossas fontes individuais de ressonância, buscando na experiência da coletividade o eco do instinto primário dos caçadores-recolectores que éramos até há poucos milhares de anos.

Parece-me evidente a conclusão: o nosso propósito, o espírito de comunidade, e a ressonância são verdadeiramente os laços que nos unem, os pilares que sustêm a tantas vezes referida coesão social. Sem os mesmos, estaremos condenados ao maior isolamento de todos: à clausura sobre nós mesmos. Para que tal não suceda precisamos de uma conversa aberta, conjunta, e franca sobre o futuro que queremos enquanto sociedade. Só assim poderemos erguer novos pilares que suportem as águas turbulentas dos tempos incertos que vivemos, e construir pontes que nos permitam melhor trilhar os caminhos das nossas vidas durante e após a pandemia.

[1] Viktor E. Frankl, “O Homem em Busca de um Sentido”, 2012

[2] Sebastian Junger, “Tribe. On Homecoming and Belonging”, 2016

[3] N.A. : Logoterapia deriva do grego: “logos” (sentido) e “therapéia” (terapia, cuidado). Assim, podemos dizer que, latu sensu, é a terapia a partir do sentido da vida, que é considerado a necessidade mais profunda do ser humano.

Diogo Nogueira Leite
Economista e doutorando em Ciência de Dados de Saúde

Nota: Este artigo reflete somente a perspetiva do autor e só a ele o vincula, não refletindo necessariamente as visões de quaisquer instituições com as quais se encontre afiliado.