Crónica: Da Centralidade à Parceria – um Novo Conceito de Cuidar 155

 

 

 

 

 

Constança Roquette
Doutoranda em Gestão da Nova SBE; Assistente Convidada na Nova SBE e membro do Knowledge Center de Health Economics and Management.

 

A repetição constante de certos princípios que se desejam basilares dos cuidados em saúde tem, pelo menos numa primeira fase, a mais-valia inegável de expandi-los e torná-los familiares. No entanto, esta familiaridade fruto de cartilha repetida, e nem sempre totalmente experimentada, corre o risco de levar ao crescente conforto da sua utilização, acompanhado de uma total ausência de reflexão sobre o seu verdadeiro significado. Refiro-me ao conceito “centrado no doente”. Não há proposta que não o mencione, nem apresentação que não o oralize. E bem. No entanto, a banalização pode suavizar a sua importância até um estado de efeito neutro para quem o lê, ou escuta, na convicção de que estamos perante o óbvio.

Uma das reflexões mais interessantes que li sobre o conceito de cuidados centrados no doente foi desenvolvida por Marie-Pascale Pomey, investigadora da Universidade de Montreal, e gostaria de partilhá-la, não com o intuito de prolongar o já muito dito, mas apenas porque alerta para as nuances deste conceito de uma forma curiosa.

Pomey apresenta uma analogia simples sobre a evolução do conceito de “cuidar” em saúde. Brinca com a língua Inglesa num trocadilho subtil, mas engenhoso, que nem sempre é tão feliz na sua tradução. A investigadora observa que, nas últimas décadas, tem-se verificado uma mudança de paradigma quanto ao papel do doente nos cuidados de saúde. Passou-se de uma lógica de care to patients (cuidados a doentes) para uma de care for patients (cuidados para os doentes), procurando-se uma relação de cuidados centrada na pessoa com doença, numa abordagem interdisciplinar e mais humana dos cuidados de saúde. No entanto, Pomey repara, de forma pertinente, que a mais tradicional visão de cuidados passou de uma relação “paternalista” entre médico e doente, onde o papel do doente é mais passivo e onde a informação e a tomada de decisão têm apenas caminho unidirecional, para uma relação “maternalista”, com mais partilha de informação e consideração pela vontade do doente, mas que não promove necessariamente a sua participação ativa nos seus cuidados.

Em contraste, uma nova lógica de cuidados em saúde tem vindo a ganhar dimensão, devido também ao crescente número de doenças crónicas e raras, em que os doentes se tornam, muitas vezes por inevitabilidade, especialistas das suas próprias doenças e condição. No caso particular das doenças raras, devido à fragmentação do conhecimento médico e, por vezes, falta de resposta dos sistemas de saúde locais, os doentes tendem, em última instância, a confiar em si mesmos para compreender melhor a sua doença. Deste modo, uma lógica de care with patients (cuidados em conjunto com os doentes) reconhece que, devido à sua experiência com a doença e da utilização regular dos serviços de saúde, o doente desenvolve capacidades que se revelam uma fonte rica de conhecimento e que devem ser consideradas nas decisões sobre os seus cuidados.

Com esta analogia sobre a evolução do conceito de “centro”, Pomey destaca a importância de promover um papel mais ativo das pessoas com doença. A transição para uma lógica de care with patients sublinha a necessidade de valorizar a experiência e conhecimento dos doentes, promovendo uma relação de parceria que potencializa a qualidade dos cuidados prestados em saúde. É, por isso, crucial continuar a refletir criticamente sobre o verdadeiro significado de cuidar em saúde e deste ser “centrado no doente”, evitando desprovir este conceito do seu nobre significado e assegurando que continue a evoluir e a adaptar-se às necessidades das pessoas com doença.

Referências:

Pomey, M.P., Flora, L., Karazivan, P., Dumez, V., & Clavel, N. (Eds.). (2019). Patient engagement: How patient-provider partnerships transform healthcare organizations. Springer International Publishing. ISBN 978-3-030-14100-4.