De olhos postos no modelo anglosaxónico 644

São sobretudo as «necessidades do mercado» que potenciam o desenvolvimento dos serviços farmacêuticos, defende Luís Lourenço. Por outro lado, «a liberdade de escolha do utente é um conceito muito mais presente nas sociedades anglosaxónicas», enquanto «a Europa Continental continua a ter uma visão destas questões mais conservadora e paternalista».

Ao longo dos últimos anos tem-se assistido a uma mudança de paradigma do papel do farmacêutico no sistema de Saúde. Passou a existir um maior foco no doente e na otimização da sua terapêutica, acompanhado por um reforço do papel clínico do farmacêutico, na prestação de serviços como revisão da medicação, informação sobre medicamentos ou gestão da doença crónica.

Num contexto em que se continua a assistir a um envelhecimento da população e, consequentemente, a um aumento da prevalência de doença crónica e de doentes polimedicados, com risco acrescido de problemas relacionados com a medicação, a intervenção farmacêutica ao nível dos cuidados de saúde primários é um contributo para a otimização da terapêutica do doente, o uso seguro e efetivo dos medicamentos e a melhoria dos resultados em Saúde.

Além de Portugal, nos últimos anos vários países, tais como o Reino Unido, Canadá, Estados Unidos, Austrália ou a Alemanha têm vindo a desenvolver projetos nesse sentido.

Luís Lourenço, presidente da Secção Regional Sul e Regiões Autónomas da Ordem dos Farmacêuticos e Secretário Profissional da Federação Internacional Farmacêutica (FIP, na sigla inglesa), considera que o período pandémico operou alterações nos serviços farmacêuticos a nível europeu e mundial, nomeadamente na prestação dos serviços de vacinação e testagem.

«Países que nem sequer permitiam a vacinação contra a gripe nas farmácias comunitárias, neste momento fazem a vacinação não só contra a Influenza como contra a covid-19. Foi um salto substancial».

Matriz cultural tem implicações no desenvolvimento dos serviços

Eventualmente, o modelo anglosaxónico será aquele que poderá adaptar-se melhor ao nosso país. No entanto, Luís Lourenço ressalva que a matriz cultural tem implicações no desenvolvimento dos serviços. «Existem dimensões técnicas ou tecnológicas – como o acesso à informação, por exemplo – e também culturais, que têm grande impacto no desenvolvimento dos serviços farmacêuticos».

Culturalmente, «existem países que percebem as mais-valias dos serviços farmacêuticos e estão disponíveis para os remunerar, enquanto outros ainda não estão preparados para isso».

Por outro lado, «nalguns países, o financiamento é assegurado, maioritariamente, pelo Orçamento do Estado, enquanto noutros dependem dos seguros de saúde».

Estas particularidades «fazem toda a diferença», diz o farmacêutico. Não é possível “importar” um determinado modelo tout court: «precisamos sempre de associar um serviço à jurisdição porque tudo depende das dimensões técnicas e tecnológicas, da cultura e da literacia em saúde dos cidadãos, do financiamento e da regulação».

Canadá é exemplo na arquitetura da renovação da terapêutica

Entre os países considerados pioneiros e que se encontram «na linha da frente» do desenvolvimento dos serviços farmacêuticos encontra-se, por exemplo, o Canadá «considerado o país de referência para a arquitetura do serviço de renovação da terapêutica» que, de acordo com todas as previsões, deverá avançar igualmente no nosso país ainda este ano.

E também o Reino Unido, que tal como Portugal se debate com a questão da falta de recursos humanos na Saúde para dar resposta a todas as necessidades, desde há vários anos «começou a envolver os farmacêuticos na revisão da medicação e, posteriormente, na renovação das prescrições».

Há alguns anos, avançou a «prescrição independente». Esta expansão potencialmente revolucionária dos serviços que os farmacêuticos fornecem ao Serviço Nacional de Saúde inglês (NHS), assenta na existência de protocolos para dadas afeções e na formação destes profissionais que os habilita a prescrever e dispensar medicamentos ao abrigo desses protocolos.

Ainda no Reino Unido, Ema Paulino, presidente da ANF, destaca o New Medicine Service (NMS). O serviço é disponibilizado a doentes a quem tenha sido prescrito um novo anticoagulante ou que padeçam de uma das seguintes condições crónicas: asma, doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), diabetes tipo 2 ou hipertensão arterial.

O NMS consiste num momento de formação inicial ministrada pelo farmacêutico responsável pela cedência da medicação, seguido pelo acompanhamento do doente durante as semanas seguintes. A realização de reuniões entre o farmacêutico e o doente ao longo deste acompanhamento revela-se como bastante útil para esclarecimento de eventuais dúvidas que o doente possa ter relativamente à medicação, bem como para a deteção de possíveis hábitos que possam estar a contribuir para uma possível má adesão à terapêutica e, consequentemente, menor efetividade do tratamento.

Os resultados clínicos e económicos do NMS levaram a um alargamento do número de patologias abrangidas pelo serviço, bem como do número de medicamentos.

A presidente da ANF refere ainda o exemplo recente da Alemanha na área respiratória e também na insuficiência cardíaca, «com o desenvolvimento de programas ou serviços de acompanhamento dessas pessoas ao longo do tempo, para otimizar a efetividade e a segurança das terapêutica que utilizam».

Na perspetiva de Luís Lourenço são sobretudo as «necessidades do mercado» que potenciam o desenvolvimento destes serviços. Por outro lado, «a liberdade de escolha do utente é um conceito muito mais presente nas sociedades anglosaxónicas».

«A Europa Continental continua a ter uma visão destas questões muito mais conservadora e paternalista», diz o farmacêutico, recordando por exemplo, há alguns anos, «a relutância da parte de muitos profissionais de saúde do nosso país em aceitarem que a Farmácia Comunitária pudesse realizar medições da pressão arterial, algo que agora é visto como perfeitamente natural».

Austrália destaca-se na PIM e Manila surpreende

Na Austrália, Luís Lourenço destaca a Preparação Individual da Medicação como um serviço em franco desenvolvimento, com serviços automatizados nas farmácias e validação dos farmacêuticos.

Nos Estados Unidos, refere os serviços de testagem e a existência de protocolos de dispensa de medicação ao abrigo de acordos estabelecidos entre os prescritores e as farmácias.

As suas viagens levaram-no até Manila, nas Filipinas, surpreendendo-se com o grau de desenvolvimento da dispensa de medicamentos ao domicílio. «Numa cidade em que o trânsito é terrivelmente intenso, os farmacêuticos recebem as prescrições online, fazem a validação, libertam a dispensa dos medicamentos e fazem o follow-up através de videochamada».

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO #362 (FEVEREIRO 2023, EDIÇÃO ESPECIAL SERVIÇOS FARMACÊUTICOS)