O exercício de funções simultaneamente no sector privado e no público, pelos profissionais de saúde, tem sido criticado pelo risco que coloca em termos de perda de eficiência, promiscuidade e conflitos de interesse. Isto pode acontecer, por exemplo, quando existem médicos que são responsáveis pela prescrição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica e que podem ter, em paralelo, participações em empresas privadas que vendem estes mesmos produtos. Ou ainda, se os profissionais trabalham em hospitais concorrenciais: hospitais do SNS que são produtores de listas de espera; e em hospitais privados, que atendem a procura não satisfeita pelos públicos, particularmente através de cheques cirurgia emitidos pelo SNS.
Adicionalmente, se existe uma divisão do tempo entre atividade privada e pública, o profissional de saúde dedicaria menos tempo àquela que lhe permitiria auferir uma menor remuneração, pela sua restrição temporal. Em alternativa, dedicando esforço igual às duas atividades, correria o risco de ficar sobrecarregado, caso abdique de tempo de lazer, para dedicar mais tempo ao trabalho. Esta sobrecarga, poderia pôr em causa a qualidade das prestações de cuidados ou, mesmo no limite, o acesso a cuidados de saúde atempados.
Por forma a limitar os efeitos prejudiciais da duplicação de funções no privado e público, surge muitas vezes a hipótese dos profissionais do SNS serem contratados em regime de exclusividade. No entanto, o SNS pode também ficar a perder em alguns aspetos com esta medida.
Em caso de exclusividade, o público e o privado vão competir pelos recursos humanos disponíveis. Se o SNS for menos competitivo, pode ocorrer uma fuga de cérebros para o privado, deixando o SNS privado dos recursos humanos mais valiosos. Esta fuga pode ser especialmente preocupante em termos da equidade regional do SNS. Uma vez que já se sente atualmente alguma dificuldade na fixação de profissionais nas zonas mais rurais, numa situação de carência de profissionais, o problema poderia ser agravado.
O sector privado pode tornar-se mais atrativo pela sua autonomia de gestão e formas de remuneração, quer em termos de salário, como de prémios e incentivos. Estas condições contrastam com alguma estabilidade contratual no SNS, com necessidade de contratualização através de concursos, pouca flexibilidade na progressão de carreira e remunerações tabeladas, sem incentivos, salvo raras exceções, como é o caso das unidades de saúde familiar do modelo B, onde a remuneração inclui uma base, suplementos e compensações pelo desempenho.1
Por outro lado, no privado, a existência de remuneração por incentivos, aliada à possibilidade de maior pressão por resultados, podem fazer com que os profissionais com mais tempo de carreira se afastem, preferindo passar o final do seu percurso nos hospitais do SNS. O facto de o SNS ficar com recursos humanos envelhecidos pode complicar a atividade no serviço de urgência, por exemplo.
O tema da exclusividade é assim bastante complexo. No entanto, para formarmos uma opinião, é ainda necessário dar resposta a várias questões: O que motiva os profissionais a trabalhar no SNS? Será uma questão de incentivos financeiros? Em quanto é que seria necessário aumentar a remuneração no SNS para que os profissionais optassem por se manter em funções de exclusividade? Será que mais horas no SNS significam mais horas produtivas? No entanto, a maioria dos estudos que se conhecem nesta área são baseados apenas em teoria e é ainda sentida falta de evidência empírica que responda a estas questões complexas.2
Enquanto isso, talvez o caminho seja tornar o SNS mais competitivo no mercado de trabalho. Reforçando as vantagens que já o caracterizam, como sejam, a oferta de formação contínua, pela possibilidade de trabalho em equipas multidisciplinares e mais alargadas e pela discussão de casos mais complexos. Ainda, tornar a remuneração mais atrativa, com fórmulas mais complexas que premeiem a performance, qualidade e produtividade dos profissionais.
Joana Alves
(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)
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Referências:
1. Decreto-Lei n.º 73/2017 de 21 de junho.
2. Moghri, J., Rashidian, A., Arab, M., & Akbari Sari, A. (2017). Implications of Dual Practice among Health Workers: A Systematic Review. Iranian journal of public health, 46(2), 153–164.