Um “número substancial” de residentes farmacêuticos na área de especialidade de Análises Clínicas desistiram do internato após se terem deparado com “obstruções à formação” levantadas por alguns diretores de serviço de patologia clínica. Houve mesmo quem recorresse à ameaça de demissão como oposição à formação.
Iniciada no primeiro dia útil do ano, a 2 de janeiro de 2023, a Residência Farmacêutica (RF), um desejo antigo que tem como objetivo formar profissionais nos serviços de Saúde públicos, colmatando um conjunto de lacunas no Serviço Nacional de Saúde (SNS), abriu 143 vagas em três áreas de especialidade para quatro anos de formação profissional: Genética Humana (8), Farmácia Hospitalar (92) e Análises Clínicas (43).
Se nos primeiros dois casos o processo parece ter-se realizado sem grandes sobressaltos, no caso da área de especialidade de Análises Clínicas a Comissão Nacional da Residência Farmacêutica (CNRF) e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) foram obrigadas a intervir de modo “firme” em defesa dos residentes.
Esclarecimento da Ordem dos Médicos
A efetividade da RF é fresca, mas a sua discussão é tudo menos recente. Os Decretos-Leis 108 e 109, ambos de 30 de agosto de 2017, estabeleciam já o regime da carreira farmacêutica e da carreira farmacêutica especial. E três anos depois, a 24 de fevereiro de 2020, o Decreto-Lei 6 definiu o regime jurídico para a atribuição do título de especialista nas carreiras farmacêutica e especial farmacêutica.
No entanto, a novidade não seria clara para todos e, após uma reunião realizada no dia 16 de dezembro de 2022, o Colégio de Especialidade de Patologia Clínica da Ordem dos Médicos, que se viu “confrontado com várias questões” respeitantes à RF, sentiu a necessidade de informar as direções dos serviços de patologia clínica que “os patologistas clínicos não devem assumir a responsabilidade de orientação das residências farmacêuticas”.
Num documento enviado aos membros da Ordem, a que o Netfarma teve acesso, é esclarecido que a idoneidade formativa atribuída por este Conselho de Especialidade “apenas respeita à formação de médicos no âmbito do internato especializado em Patologia Clínica”, pelo que apenas a esta classe lhe está diretamente relacionada.
“Obstruções” contribuíram para desistências
“Esse documento é desprovido de fundamento porque não está, nem nunca esteve, em causa – a lei nem sequer prevê essa situação – que a formação de farmacêuticos seja orientada por outros profissionais que não sejam farmacêuticos especialistas”, explica ao Netfarma Carlos Maurício Barbosa, presidente da CNRF e bastonário da Ordem dos Farmacêuticos entre 2009 e 2015.
O responsável vai mais longe e garante ainda que “um dos critérios para que um estabelecimento de Saúde receba idoneidade formativa é ter pelo menos um farmacêutico especialista nestas áreas”. Neste caso, são 80 os estabelecimentos identificados como capazes de cumprir com os objetivos. “Trata-se de legislação, de leis, não se trata de nenhuma decisão pessoal de ninguém em particular” reitera Carlos Maurício Barbosa.
Aparentemente, fosse por dúvida, convicção ou um outro fator, alguns residentes farmacêuticos na área de especialidade de análises clínicas depararam-se com entraves ao internato, denuncia o presidente da CNRF. “Tivemos várias situações em que simplesmente não queriam receber os residentes, trata-se de cumprir a lei. Em alguns casos, com grande dificuldade, acabaram os conselhos de administração por internamente dar ordens [aos diretores dos serviços de patologia clínica] no sentido do cumprimento da lei”, continua.
O Netfarma sabe que dois dos casos mais graves terão acontecido na Unidade Local de Saúde de Matosinhos e no Centro Hospitalar de Setúbal. Sem confirmar nomes ou estabelecimentos, Carlos Maurício Barbosa avança, ainda assim, que “alguns diretores de serviço ameaçaram demitir-se caso recebessem um residente”.
Três décadas de “falta de atenção”
Designado pela Ordem dos Farmacêuticos (OF), Henrique Reguengo é membro da CNRF na área de especialidade de Análises Clínicas. “Não é nada que não estivéssemos à espera”, admite, justificando a situação com “30 anos da falta de atenção que os sucessivos governos deram aos farmacêuticos no SNS”. “A rotina habitual nos hospitais é que haja um internato médico para patologia clínica e nada para os farmacêuticos”, resume.
Terão sido cerca de 10 as desistências, um número que apenas será conhecido quando todos os dados relativos à primeira edição da RF forem divulgados publicamente, o que deverá acontecer ainda este mês. Henrique Reguengo fala apenas num “número mais elevado do que gostava” e Carlos Maurício Barbosa fica-se por um “número substancial”. De qualquer das formas, assim que um residente decide desistir, este não é substituído, ficando a formação de quatro anos com vagas não atribuídas, ou seja, com menos profissionais formados.
Henrique Reguengo refere que “a receção deveria ter sido mais acolhedora” para não contribuir para as desistências por parte dos residentes que, continua, também poderiam ter tido “mais resiliência porque o grande grosso das situações que foram reportadas à CNRF acabaram por ser resolvidas”. Na próxima edição, a começar em 2024, a “experiência que se adquiriu nesta ronda” deverá impedir novos problemas, diz.
O também presidente do Sindicado Nacional dos Farmacêuticos (SNF) lembra que outro problema passa pela “integração destes colegas no fim do internato”, uma vez que “há serviços onde deixámos de ter farmacêuticos, mais uns anos e deixávamos de ter colegas para formar a nova geração” na área das Análises Clínicas.
Laboratórios “são dirigidos como uma coutada”
“Esta residência era um desejo de muitos anos” e uma “oportunidade muito boa”, lembra Jorge Nunes Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Analistas Clínicos. Responsável por um laboratório da Póvoa de Varzim, revela que teve um estagiário que acabaria por sair do seu estabelecimento para poder frequentar a residência farmacêutica no Hospital de São, no Porto, onde não encontrou qualquer problema.
Enquanto membro da Sociedade Portuguesa de Medicina Laboratorial (SPML), conversou com médicos que lhe confirmaram que alguns laboratórios hospitalares “não tiveram conhecimento da existência da residência, foi uma coisa que lhes apareceu em janeiro, pessoas a entrar numa coisa que ninguém lhes falou”. “Ao princípio ficaram surpreendidos, num ou outro caso levantaram questões”, diz, revelando problemas de comunicação.
Contudo, existem casos onde a informação não terá sido o problema. Trata-se de casos onde os “laboratórios são dirigidos como uma coutada – de forma muito fechada e pouco transparente – onde quem lá está faz mais ou menos o que quer, ninguém se mete com eles”. Insiste que deve haver mais atenção por parte da OF, da CNRF e da ACSS, que devem deslocar-se aos serviços e perceber a origem dos problemas.
Hoje, todos os casos onde não houve desistência foram resolvidos, “com maior ou menor dificuldade e capacidade de persuasão”, com a CNRF e o conselho diretivo da ACSS a serem “sempre muito firmes nas suas posições, no sentido do cumprimento da legislação” e com o apoio do secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, explica Carlos Maurício Barbosa.
Em causa está “o rejuvenescimento dos recursos humanos do SNS”, refere, para deixar uma palavra de apreço aos internos “que aguentaram a pressão psicológica e que hoje estão a realizar as suas residências”.