Dispensa e renovação, Residência, vacinação, Estatutos da OF e Livro Branco: O ano em retrospetiva 612

O ano de 2023 não desiludiu certamente quem esperava novidades, notícias, ou, até, algumas polémicas ou dissonâncias que envolvessem o universo farmacêutico. Com 2024 a uma distância curta, o Netfarma recorda-lhe alguns dos temas que marcaram os últimos (quase) 365 dias, com os detalhes mais relevantes.

Da dispensa em proximidade e renovação de terapêutica crónica, passando pelo novo Estatuto da Ordem dos Farmacêuticos ou o recém lançado Livro Branco das Farmácias, 2023 foi pródigo em questões de importância para a farmácia e para os farmacêuticos, que exploramos neste artigo.

Dispensa em proximidade e renovação da medicação

Eram duas das medidas mais esperadas pelos farmacêuticos para o ano que agora finda, visto estarem inclusivamente inscritas no Orçamento de Estado para 2023: a criação de um sistema de distribuição de medicamentos hospitalares em proximidade e a renovação automática da medicação para doentes crónicos.

Ao longo de 2023, personalidades como Ema Paulino, presidente da Associação Nacional das Farmácias, e Helder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, abordaram de forma intensa o assunto.

Ao Netfarma e à Farmácia Distribuição, em maio, Helder Mota Filipe, numa entrevista extensa, que marcou um ano de mandato e em que abordou vários dos temas prementes da farmácia, muitos dos quais descritos neste texto, dizia que os dossiers avançariam “nos próximos meses”. Por conseguinte, foi já no último trimestre do ano, a 25 de outubro, que a renovação da medicação para doenças crónicas foi lançada, na USF Alto dos Moinhos e na Farmácia Lusíadas, em Lisboa. Nesse dia, Manuel Pizarro, ministro da Saúde, declarou que este “ambicioso projeto facilita a vida aos cidadãos, aumenta a adesão aos fármacos, retira trabalho administrativo aos médicos de família, mas, acima de tudo, dignifica o farmacêutico”.

No entanto, Manuel Pizarro, a 15 de dezembro, admitia “problemas inesperados” com o novo modelo de prescrição de medicação para doenças crónicas, e que “alguns erros” teriam que ser corrigidos, garantindo a resolução “em algumas semanas”.

Ministro admite “problemas inesperados” com receitas eletrónicas para doenças crónicas

Já sobre o regime de dispensa em proximidade, o Conselho de Ministros aprovou a versão final do decreto-lei no início de dezembro, com o Presidente da República a promulgar, no passado dia 21 de dezembro, o diploma, permitindo que até 200 mil utentes tenham acesso aos fármacos prescritos pelo seu hospital, em farmácias mais próximas das suas residências.

Residência começou mesmo da “melhor maneira”?

“O anos de 2023 não se poderia iniciar de melhor maneira”. Foi assim que Helder Mota Filipe, logo a 2 de janeiro de 2023, deu as boas-vindas aos 143 farmacêuticos que iniciavam o programa da Residência Farmacêutica, em cerca de 45 instituições de saúde, públicas e privadas, no continente e regiões autónomas. Numa cerimónia que decorreu no Centro Hospitalar Universitário da Cova da Beira, o bastonário referiu ainda que a “Residência Farmacêutica é a base do desenvolvimento da Carreira Farmacêutica no SNS”.

Assista à cerimónia de receção da Residência Farmacêutica

Também presente, o diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, afirmou que a Residência Farmacêutica reflete uma aposta do SNS nos farmacêuticos, “procurando garantir que são oferecidas as melhores condições para o seu desenvolvimento técnico e profissional”. Disse ainda que o arranque deste programa representa “a maior disrupção no processo formativo farmacêutico no SNS”. Estes primeiros farmacêuticos residentes têm uma “enorme responsabilidade. Pela importância deste processo para toda a classe, mas também para a melhoria dos cuidados prestados às populações. São pioneiros na definição deste processo, cujo sucesso depende também deles”, acrescentou.

Serviço Regional de Saúde da Madeira recebe internato em Residência Farmacêutica

Contudo, a Ordem dos Farmacêuticos, mas não só, veio alertando para falhas no processo da Residência Farmacêutica, sendo que em maio surgiu uma das primeiras grandes polémicas em torno da questão. Num exclusivo Netfarma, contámos que um “número substancial” de residentes farmacêuticos, na área de especialidade de Análises Clínicas, haviam desistido do internato após se depararem com “obstruções à formação”, levantadas por alguns diretos de serviços de patologia clínica, que chegaram mesmo a ameaçar demitir-se.

Diretores de serviço ameaçaram demitir-se para não receberem residentes farmacêuticos

Num documento enviado aos membros da Ordem, a que o Netfarma teve acesso, era esclarecido que a idoneidade formativa atribuída pelo Colégio de Especialidade de Patologia Clínica da Ordem dos Médicos “apenas respeita à formação de médicos no âmbito do internato especializado em Patologia Clínica”, pelo que apenas a esta classe lhe está diretamente relacionada.

Poderá recordar todo o caso aqui, com explicações de Carlos Maurício Barbosa, Henrique Reguengo e Jorge Nunes Oliveira, sendo que Helder Mota Filipe, aquando da já referida entrevista exclusiva ao Netfarma e à Farmácia Distribuição, não alimentou concretamente esta discussão. Mas o bastonário, em abril, falava em “lacunas e injustiças” na Carreira e Residência Farmacêutica, sendo que, em agosto, a Ordem dos Farmacêuticos alertava para uma redação “tão mal feita que tem mesmo de ser alterada”. Com o segundo ano prestes a arrancar, resta ver que novidades e mudanças se verificarão agora, se é que que acontecerão mesmo.

Ordem insiste na resolução de “lacunas e injustiças” na Carreira e Residência Farmacêutica

Vacinação nas farmácias

Mais de 2,2 milhões de pessoas foram vacinadas contra a gripe entre 29 de setembro e 24 de dezembro. Desde o início da campanha de vacinação sazonal, a 29 de setembro, foram vacinadas 1.797.328 pessoas com o reforço sazonal contra a covid-19 e 2.266.010 pessoas contra a gripe. Das vacinas administradas contra a covid-19, a maior parte foi dada nas farmácias, com mais de 1,2 milhões de vacinas. Quanto às vacinas da gripe, a maior parte também foi administrada nas farmácias, 1.603.398, contra 662.202 no SNS.

Os números revelam um aumento nas taxas de vacinação, mas o início do processo não foi pacífico, sobretudo devido à oposição da Ordem dos Enfermeiros. Foi no verão que surgiu o anuncio da medida relativa à vacinação sazonal contra a gripe e covid-19, com os enfermeiros a contestarem a decisão do Governo em agosto, defendendo que as farmácias deveriam contratar enfermeiros para o efeito. “A Ordem dos Enfermeiros defende a segurança dos cuidados prestados às pessoas numa lógica de respeito pelas competências profissionais próprias de cada classe profissional. Por comparação, não passa pela cabeça da Ordem dos Enfermeiros administrar formação ‘ad hoc’ para que os enfermeiros vendam medicamentos”, referia, inclusivamente, um comunicado da altura.

“Vamos tomar as vacinas porque está provado que funcionam”

Em resposta, e em declarações ao Netfarma, a presidente do Colégio de Especialidade de Farmácia Comunitária da Ordem dos Farmacêuticos (OF), Carolina Mosca, considerou “absurdas” as declarações da Ordem dos Enfermeiros, lembrando ainda que “a administração de vacinas e medicamentos injetáveis é um serviço dispensado por farmacêuticos nas farmácias comunitárias há 16 anos, quando a Portaria n.º 1429/2007 definiu os serviços farmacêuticos que podem ser prestados pelas farmácias”.

Carolina Mosca considera “absurda” posição da Ordem dos Enfermeiros sobre vacinação

Com o processo em curso, o Sindicato dos Enfermeiros também não deixou de se pronunciar, referindo que a vacinação nas farmácias custará cerca de 35 milhões de euros ao SNS, e ainda que a decisão “foi mais um passo na asfixia do SNS”.

A polémica com os Estatutos

A reforma das Associações Públicas Profissionais tinha por objetivo garantir menos restrições no acesso, mais transparência ou até uma autonomia reforçada, com a muito criticada introdução de um Órgão de Supervisão com membros externos à profissão. Uma reforma que de resto passou pelo Tribunal Constitucional, que não a colocou em causa. Do lado das Ordens Profissionais, foram várias as críticas a este documento, com acusações de ingerência e a demissão do coordenador da Reforma da Saúde Pública, contra a posição do Governo.

“Estado e Ordens estão condenados a entenderem-se”, dizia Manuel Pizarro no início do mês de junho, e semanas mais tarde garantia mesmo que o Conselho de Supervisão era “uma falsa questão”, já que a maioria de conselheiros estaria ligada à profissão (80%). Ainda assim, o Governo abriu a porta a novas alterações, em coordenação com as respetivas Ordens.

Durante o verão, na entrevista ao Netfarma e à Farmácia Distribuição, Helder Mota Filipe afirmou mesmo que se viviam “tempos de desconsideração pelas ordens profissionais”. “A postura da maioria de Governo é tirar às ordens a sua essência e que estas se tornem em agremiações com poucas ou nenhumas competências”, frisou Helder Mota Filipe, dizendo então estar “preocupado com que haja uma vontade tão ideológica que torna cegos aqueles que estão a propor” estas novas regras.

Bastonário: “Vivemos tempos de desconsideração pelas Ordens profissionais”

 

Uma petição, criada pela farmacêutica Paula Chambel, chegou mesmo a exigir independência das Ordens face ao poder político. O Parlamento aprovou a 19 de julho a proposta de lei do Governo sobre a alteração dos estatutos das ordens profissionais, com a OF a alertar uma semana depois que a revisão poderia mesmo representar risco para a saúde dos cidadãos. Isto, e este argumento foi sempre bastante usado, porque os farmacêuticos consideravam “imperativo” garantir que a prática dos atos não reservados aos farmacêuticos, previstos na diploma em discussão, tenha como condição prévia a existência de habilitação legal por parte dos profissionais que se propõem a prestá-los, “sob pena de se cair na total desregulação do setor da Saúde em Portugal”.

Estatutos: OF reitera risco para a saúde dos cidadãos

A Ordem dos Farmacêuticos pediu em novembro um veto presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa, mas o Presidente da República viria mesmo a promulgar a alteração no início de dezembro. No entanto, o Chefe de Estado, provavelmente sem surpresa para os farmacêuticos, demonstrou algumas reservas, chamando “a atenção para a necessidade de corrigir alguns aspetos que podem ser causadores de entropias relativamente aos destinatários dos serviços”.  O novo Estatuto da Ordem dos Farmacêuticos foi publicado em Diário da República no passado dia 18 de dezembro e entrará em vigor no dia 1 de março de 2024.

Publicado o novo Estatuto da Ordem dos Farmacêuticos

O futuro através de um Livro Branco

Para mais perto do final de 2023, já na segunda metade de novembro, foi apresentado o Livro Branco das Farmácias Portuguesas, lançado na conferência “As Farmácias na Jornada da Saúde das Pessoas”, promovida pela Associação Nacional das Farmácias. Na apresentação do documento, que pode ler clicando aqui, com 154 páginas, a presidente da ANF, Ema Paulino, afirmou que “este Livro Branco não partiu de uma folha em branco”.

A presidente da ANF destacou as propostas presentes no documento em que as farmácias podem apoiar o sistema de Saúde, como a prevenção e rastreio de hepatites virais, VIH e outras infeções, a integração nos rastreios nacionais, a referenciação para outros níveis de cuidados e uma intervenção ativa na saúde mental e prescrição social, sinalizando e encaminhando pessoas para as instituições adequadas, se necessário.

Livro Branco das Farmácias foi apresentado. Leia aqui

Realçou ainda o conceito de “farmacêutico de família”, uma medida que considera ter “um enorme potencial”, numa perspetiva de haver esta figura com quem o médico de família e o enfermeiro de família podem interagir e dessa forma potenciar, enquanto equipa multidisciplinar de saúde, os cuidados que são prestados à população.

Presente na conferência, o diretor executivo do SNS, Fernando Araújo, afirmou que o Livro Branco está “muito bem estruturado e abre um conjunto de dimensões que podem e devem ser exploradas”.

E não é possível terminar a resenha de 2023 sem falar do que se poderá esperar de 2024, a começar por uma medida de que Helder Mota Filipe falou recentemente ao Netfarma, e que está no Orçamento de Estado para o próximo ano. “Relativamente à medida do Orçamento de 2024, que é a intervenção dos farmacêuticos em situações clínicas ligeiras, vamos iniciar o processo e já pedi uma reunião ao Diretor Executivo do SNS. Isto para que comecemos a discutir quais são as prioridades, porque o que diz é desenvolvimento de pilotos, e eu concordo porque são medidas que têm de ser muito bem estruturadas antes de serem universalizadas”, referiu então.

Helder Mota Filipe diz que a OF faz “pressão calma” em relação a assuntos prementes