Ao longo dos últimos anos tem sido comum o discurso sobre a transformação da farmácia comunitária, deixando de ser apenas (ou sobretudo), um local de dispensa de medicamentos para ser um “espaço de saúde”. Ou dito de outra forma, ter na sua atividade remunerada uma componente de serviços de saúde pública, alguns já existentes, outros não. São exemplos o apoio em auto-cuidados da população, vacinação, programa de troca de seringas, identificação de situações de risco a necessitarem de intervenção de outros profissionais de saúde.
Esta transição, na forma como tem sido apresentada, tem, porém, duas ameaças importantes. Uma dessas ameaças é controlável pelas farmácias. A outra ameaça não o é.
A ameaça não controlável pelas farmácias é o crescente volume de informação sobre os hábitos e ocorrências de vida das pessoas que é possível ser analisado com recurso a técnicas de análise de dados de grande volume. O desenvolvimento de aplicações de inteligência artificial irá, previsivelmente, permitir uma estratificação de risco e uma previsão de ocorrência de problemas de saúde que substituirá o que seria o papel das farmácias comunitárias e dos farmacêuticos nessa atividade de vigilância da população. Há pouco que a farmácia comunitária possa fazer para evitar essa ascensão da tecnologia digital na recolha e tratamento de informação.
Mais interessante será perceber como é que as farmácias comunitárias poderão criar sinergias com esses desenvolvimentos, seja na recolha de dados, seja na interpretação dessa informação, seja em intervenções na sequência da análise dessa informação. Pensar em termos de complementaridade da atividade da farmácia comunitária com os desenvolvimentos tecnológicos, focando no que não possa ser substituído pela automação digital. A resposta a essa ameaça terá que ser iniciada na própria formação dos farmacêuticos, e consolidada ao longo do tempo.
A segunda ameaça, esse sim controlável pelas farmácias comunitárias, é a inserção progressiva das farmácias comunitárias em novos modelos de prestação de serviços complementares no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, sem pagamento ou remuneração associada. Cai nesta categoria, a título de exemplo, o programa de entrega de medicamentos de proximidade do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Sendo, sem dúvida, uma boa iniciativa para os doentes crónicos, que podem no contexto desse programa escolher uma farmácia próxima de onde residem (ou trabalham) para receber medicamentos de dispensa hospitalar sem terem de ir ao hospital em Coimbra, a participação das farmácias comunitárias configura um serviço que deverá ser pago.
De outro modo, à medida que o programa se for expandindo as farmácias comunitárias irão tendo custos acrescidos, sem qualquer remuneração pela sua entrada na cadeia de valor do Serviço Nacional de Saúde. Esta é uma outra ameaça que está nas mãos das farmácias controlar, estabelecendo um preço adequado ao serviço prestado. É certo que ainda existe relutância das farmácias em cobrar serviços que são manifestamente favoráveis ao cidadão. O desejo de colaboração com o Serviço Nacional de Saúde também leva a uma predisposição positiva para participar nestes programas. Contudo, a participação inicial voluntária e gratuita é uma ameaça a uma transição para um modelo de funcionamento em que o envolvimento das farmácias comunitárias com o Serviço Nacional de Saúde na prestação de serviços passará a ser parte das receitas da farmácia comunitária. Cabe agora às farmácias aliarem uma adequada remuneração do serviço prestado à boa vontade no relacionamento com o Serviço Nacional de Saúde.
Pedro Pita Barros
Professor de Economia | Universidade Nova de Lisboa
(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)