É hora de desconfinar as farmácias … o dilema de estar na linha da frente! 1995

Fui espetador atento no último Webinar Farma Sessions sobre “Farmácia Comunitária: gerir em tempo de pandemia”. Respeitei a distância regulamentar e lá coloquei a máscara, desta vez mais para evitar que descobrissem que não sou farmacêutico. Escutei e tentei entender o que perspetivam para o próximo futuro. Pensei que poderia acrescentar alguns insights e com isso ser útil. Com espírito crítico. Mas sempre construtivo!

Sei das especificidades do setor, mas começo por olhar para as farmácias como um outro negócio de retalho. Onde as decisões (de gestão) são classificadas de correntes ou estratégicas. As decisões correntes (ou operacionais) estão relacionadas com o dia-a-dia. Não alteram a estrutura do negócio, apenas exigem maior atenção quanto à duração e amplitude dos impactos na satisfação de necessidades e expectativas dos clientes. Utilizam recursos internos. Por isso são  conjunturais. São decididas pelos operacionais. Não modificam o quadro geral.

Mas com as decisões estratégicas é diferente. Estas, a partir de um posicionamento bem definido, determinam a forma mais ou menos duradoura como a empresa se vai relacionar com o exterior. Sejam fornecedores, distribuidores, parceiros, clientes, etc. Utilizam variáveis externas. Implicam definição de objetivos quantitativos e qualitativos e uma alocação de recursos compatível. São estruturais. Decididas pela gestão de topo. Conduzem à ação. Cada dia, cada semana, podem trazer um milestone diferente.

Dito isto, e ficando agora mais claro as diferenças de gestão que aqueles tipos de decisões implicam, parece-me poder dizer-se que a gestão das farmácias comunitárias durante a pandemia tem sido na sua essência uma gestão corrente. Cada farmacêutico, com toda a sua sensibilidade, disponibilidade e flexibilidade respondeu à emergência que lhe bateu à porta. Não fosse a quebra de faturação (o que nem foi verdade para muitas farmácias), e eu diria que nada no essencial mudou. Ouvi farmacêuticos constatar que “os utentes desapareceram!!!”. Posso até especular que para muitos (!?) o ideal seja que rapidamente os utentes possam voltar à farmácia para que tudo “volte ao normal!”.

Mas será que o “Novo Normal” vai ser igual àquilo que era? Ou quanto diferente vai ser?  Ou será que algumas das mudanças introduzidas durante a pandemia podem ser incorporadas ou mesmo redesenhadas para antecipar as mudanças que se “pressentem”?

Claro que sim. Eu penso que sim, e vou explicar-vos o meu raciocínio. Desde há muito tempo que me interrogo porque razão o negócio das farmácias não é feito na base de um modelo de gestão por objetivos (inteligentemente adaptado ao negócio da farmácia, claro está). Conheço bem o histórico e todo o enquadramento político que criou a ideia do “negócio garantido” para as farmácias. Mas não quero entrar por aí. Quero pensar na farmácia do futuro. Que transformação? Quanto digital? Quanto complementar do SNS? Qual será então o pensamento estratégico, que melhores garantias trazem à continuidade e sustentabilidade deste negócio no mercado atual?

E vem-me à memória uma frase batida: “são os farmacêuticos que estão na linha da frente no atendimento a nível dos cuidados de saúde primários!”. Tudo bem. Mas em termos estritamente militares, sabemos que a característica principal de quem está na linha da frente não é ficar à espera que o inimigo avance. É antes, avançar, surpreender. Ter sentido estratégico. Saber escolher as armas. Saber beneficiar das oportunidades que o terreno oferece. Vejamos então, de forma sumária, que variáveis devem ser avaliadas para que as farmácias não tenham que continuar “confinadas” à engrenagem de uma qualquer cadeia de distribuição:

ACESSIBILIDADE/PROXIMIDADE – será provavelmente um dos fatores que mais garantias dá de sustentabilidade financeira. Há zonas do País onde as farmácias vão ter de avaliar o seu potencial de crescimento e redesenhar o seu perímetro de atuação. Valorizar as questões demográficas e perfil aquisitivo dos utentes. Fusões e aquisições podem constituir solução em muitas zonas. Entregas no domicílio e compras online podem complementar atitude mais patient-service. Daí ganha-se diferenciação, o que pode consolidar fidelização.

PRODUTOS/MERCADOS – inclui as decisões sobre gama de produtos/serviços nas patologias e segmentos de mercado que queremos servir. Medicamentos e outros produtos de saúde, cuidados de saúde, sempre articulados com as unidades de saúde locais, pois esse será o primeiro passo para serem “complementares”! SNS, sub-sistemas, e entidades prestadoras de cuidados (empresarial, social). O conhecimento prévio de critérios terapêuticos dos médicos da zona pode ser elemento facilitador na gestão da oferta dos MSRM (não esquecer o impacto da prescrição por DCI no volume de faturação). Nada de novo por aqui. O importante mesmo é ter uma oferta adaptada ao perfil de utentes e não “só porque sim”.

PREÇOS/DISTRIBUIÇÃO – é uma área que nos medicamentos deixa pouca margem de negociação para além do já conhecido. Negociar margens em função de quantidades com distribuidores – ou com laboratórios farmacêuticos – dependerá sempre da capacidade de vender em tempo útil. Nos outros tipos de produtos ou serviços a margem é outra. Mas aí o sucesso aparece se a venda for ativa. Não pode estar dependente da entrada dos clientes na farmácia e da iniciativa individual de cada um. Uma vez mais a web e o digital podem estar ao serviço do smart active selling.

FATORES DE DIFERENCIAÇÃO/VANTAGENS COMPETITIVAS – aqui vale a pena não ignorar as assimetrias do país. O que é verdade nesta zona pode ser absurdo naquela outra. Ainda assim “pensar global e atuar local” é um bom princípio. Uma das linhas de desenvolvimento que sugiro passa por desenvolver o site da farmácia e utilizá-lo para “ponto de encontro” destes farmacêuticos com os seus utentes. Essencialmente para disponibilizar conteúdos que possam informar, educar e modelar comportamentos (e talvez mais tarde vender). A IF pode (e deve) dar contributos, mas também alguns médicos “locais” podem aparecer na qualidade de opinion-makers. E porque não os membros locais/regionais das Associações de Doentes? Este novo tipo de colaboração sinérgica “local” pode muito bem constituir o primeiro passo para outros projetos colaborativos desenhados para as comunidades. E não será preciso inventar. Recuperar para a luz do dia muitos dos conteúdos “escondidos” no site da DGS (por exemplo) pode ser inovador em muitos núcleos populacionais. Mais haverá ainda para aprender com os Health Community Models noutros países e a forma como articulam esforços para proporcionar serviços e cuidados complementares à população. Promoção de produtos/cuidados de saúde, e monitorização de projetos de saúde comunitária também devem usar o site da farmácia, sem prejuízo de pequenos alertas e rápidas notas informativas serem emitidas via telemóvel. Aqui o racional está em que se a minha farmácia, através do seu/meu site de saúde me proporcionar toda a informação e aconselhamento que necessito, provavelmente deixarei de consultar tanto o Dr. Google (pelo menos para estas coisas mais imediatas).

Claro está que a montante, além do site da farmácia, há que desenhar/adaptar uma ferramenta para criar um eficiente ficheiro de clientes. Não me refiro ao programinha que lista as datas em que comprei qualquer produto, porque numa ótica de gestão de clientes esse ficheiro vale zero! Cabe igualmente no pacote de ideias geradoras de vantagens competitivas pensar na participação dos farmacêuticos a liderar equipas multidisciplinares que se mobilizam localmente para ações de saúde pública em escolas, lares, empresas e outras instituições.

ATIVOS/COMPETÊNCIAS/SINERGIAS – aqui o foco são as pessoas. Os farmacêuticos das farmácias comunitárias têm de aprender o que implica uma gestão por objetivos. A cada elemento da equipa corresponderá uma percentagem de tempo no controlo de stokes, outra percentagem no atendimento, outra na gestão de marketing e comunicação e eventualmente uma outra para projetos no exterior. Isto obriga muito provavelmente a novas soft skills, atualização de job descriptions, desafiantes indicadores de performance (KPI´s) e – last but not least – um sistema de remuneração e de incentivos transparente e compatível.

NOTAS FINAIS/CONCLUSÕES DE FUTURO – são conhecidas as repetidas notícias do risco de falência de algumas farmácias. Será?  São também conhecidas as expetativas quanto à possibilidade do SNS começar a subsidiar alguns serviços que mostrem ser complementares aos CSP. Será assim? Nada a opor. Mas há muito a fazer para que tal seja efetivo. Registar, monitorizar e avaliar é preciso! E pelo que entendi, vão existir ferramentas para dar suporte a esse objetivo. A ideia original parece positiva. Mas vivemos na era acelerada do eBusiness, e o tempo é inimigo da vantagem competitiva. Estamos de acordo? Ouvi ainda existirem projetos (ou planos?) para parcerias com entidades oficiais: Ordens, Apifarma, etc., para atacar o futuro próximo. Tudo ok. Reconheço bondade no conceito, mas num país como Portugal, esta ideia peregrina de desenhar projetos nacionais que depois se possam adaptar às realidades locais, em regra não funcionam. Ficam quase sempre no “Plano de Boas Intenções” de uma qualquer entidade central. E na saúde não nos faltam exemplos. Estejam atentos.

Dito isto, a verdade é que não faltam temas pertinentes para preparar o próximo futuro. Não é o momento para consumir tempo a repetir frases feitas e continuar a fazer mais do mesmo. Os que sentirem necessidade de iniciar alguma transformação com mais ou menos adoção do digital, terão aqui insights q.b. para debater. Saibam que a inovação é tanto mais fácil incorporar no dia-a-dia quanto maior proximidade e conhecimento tivermos dos nossos utentes/doentes.

Ter sempre presente que “Planos” é nada, “Planeamento” é tudo!

Luis Vasconcelos Dias
Pharma & Healthcare Consultant