A “entrega” do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao setor privado “seria uma solução mais complexa e pior” do que tentar a sua reformulação, defende Julian Perelman no Segundo Relatório de Primavera 2022 – “E agora?”, da autoria do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS).
No capítulo dedicado aos Recursos Humanos e Concorrência Público/Privado, citado pela Lusa, o especialista da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa explica que “de nada servirá um modelo de remuneração inovador e atrativo se não foram melhoradas as condições de emprego, como a flexibilidade nos contratos em termos de horas, e de trabalho, como sendo a possibilidade de investigar e estudar e de progredir na carreira”. “Embora nunca anunciada publicamente”, a entrega do SNS ao privado já está a acontecer, garante, ”com os hospitais públicos a colmatarem a falta de profissionais através da compra de serviços aos privados”.
O observatório diz ainda que tal modelo apenas poderia funcionar havendo concorrência no setor privado, “o que está longe de ser o caso num setor que é dominado por três ou quatro grandes grupos, e que deixaria de conviver com a concorrência do SNS”, sublinha. “Seria uma solução mais complexa e pior do que tentar reformar o SNS”, refere o relatório, acrescentando: “sem este tipo de reforma estrutural da governação nenhum modelo remuneratório dos profissionais, antigo ou inovador, poderá ter sucesso na retenção dos profissionais no SNS”.
O documento mostra que o modelo de dedicação plena na saúde só poderá atingir os benefícios esperados com uma reforma profunda do SNS com mais autonomia dos hospitais, remunerações atrativas e condições flexíveis que permitam aos médicos fazer investigação. Nesse sentido, “é necessário que cada hospital possa definir, em negociação com cada profissional, as metas de desempenho a atingir. Metas que sejam realistas, exequíveis, monitorizáveis, e adaptadas às necessidades locais”.
O OPSS assume que o aumento de profissionais no SNS desde 2016 – mais de 30.000 profissionais entre março 2016 e março 2022 – não se tem traduzido num aumento proporcional dos serviços prestados, aumentando, em paralelo, os custos. Aponta vários fatores que podem ter contribuído para este resultado, entre eles o facto de nos primeiros anos da pandemia a produtividade se ter centrado dos doentes covid, a disrupção das equipas com a passagem para as 35 horas, que obrigou a contratar novos profissionais, o aumento do absentismo e a concorrência do setor privado, que se tem “desenvolvido fortemente” nos últimos anos.
Esta concorrência reforçada e a constante saída de profissionais do SNS, “poderá ter contribuído para uma excessiva rotatividade e para a destruição das equipas, além da necessidade, já referida, de contratar profissionais mais jovens e menos experientes”. “O setor privado tem conseguido oferecer condições de trabalho mais favoráveis por tratar uma população menos complexa e com maior literacia, e pelas condições financeiras que lhe têm permitido inovar em termos de equipamentos e outros meios de tratamento”, acrescenta.
OPSS aponta falta de orientação estratégica na saúde
O Observatório aponta as tentativas de resposta “recentes e ambiciosas” que constam do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), mas aponta os três grandes desafios do SNS – o acesso aos cuidados de saúde, os recursos humanos e a saúde pública -, enunciando igualmente as “tentativas de resposta”, como a reforma da saúde mental, a digitalização da saúde, Lei de Bases da Saúde e o Estatuto do SNS, dedicação plena “apenas para alguns profissionais” e a criação dos Sistemas Locais de Saúde.
O Relatório da Primavera 2022 insiste que “faltam indicações sobre a adequada gestão desta complementaridade [entre o setor público e privado], assegurando a qualidade e o valor dos cuidados dos setores sociais e privados, geralmente pouco transparentes e cujo controlo parece escapar completamente ao Estado”. Lembram igualmente que falta saber qual será a estratégia a adotar “para uma população mais saudável e com maior bem-estar, independentemente do estatuto económico e social”.
Para os autores, persistem igualmente muitas dúvidas sobre as inovações que a pandemia promoveu, lembrando: “Falta saber de que forma a digitalização da saúde, ponto central e promissor do PRR, será desenvolvida”. “Como poderá a saúde digital ser efetivamente um contributo central para a integração e continuidade de cuidados centrados na pessoa/família? Será a saúde digital o instrumento que nos permita aumentar a capacidade de resposta, no presente e nas futuras pandemias?”, questionam ainda.
O Observatório Português dos Sistemas de Saúde é constituído por uma rede de investigadores e instituições académicas dedicadas ao estudo dos sistemas de saúde e produz anualmente um relatório síntese da evolução do sistema de saúde português