O ‘Desafio Global para a Medicação Segura’ é um projeto que conta com a colaboração do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Educação, Investigação e Avaliação da Segurança e Qualidade em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa (ENSP NOVA).
Em entrevista ao NETFARMA, Sónia Dias, diretora da ENSP NOVA, explica que o projeto pretende “aumentar a consciencialização sobre este tema dos erros de medicação e práticas inseguras para defender a necessidade de mais ações, concretamente no que se refere à reconciliação medicamentosa, medicamentos LASA (look-alike sound-alike), polimedicação, etc.”.
– Na Europa existem constantes desafios relativos à segurança da medicação, qual é o maior problema, do vosso ponto de vista?
– A União Europeia conta hoje com um circuito do medicamento muito robusto, onde se incluem mecanismos de vigilância que garantem a segurança dos produtos de saúde ao longo de todo o ciclo de vida. A monitorização da segurança dos medicamentos, também conhecida como farmacovigilância, conta ao nível da União Europeia com um sistema rigoroso que permite tomar atempadamente as ações adequadas sempre que é detetado algo que foge à norma, num trabalho complexo que envolve, em particular, as autoridades nacionais do medicamento, a Comissão Europeia e a Agência Europeia de Medicamentos.
Ainda assim, persistem naturalmente alguns desafios em termos de segurança do medicamento, com variabilidade entre os diferentes países e mesmo dentro de cada país, e que estão relacionados essencialmente com fatores humanos, condições ambientais ou até com dotações existentes em cada serviço que lida, de forma mais ou menos direta, com a área do medicamento.
Por outro lado, as mudanças sociais a que assistimos nas últimas décadas, o aumento do envelhecimento da população e a maior carga de doença, nomeadamente doenças crónicas, acarretam também desafios ao nível da gestão da segurança do doente, em particular nos aspetos que se referem com a polimedicação e as interações medicamentosas, para dar alguns exemplos. Neste contexto, a polimedicação, sobretudo em grupos populacionais de mais idade, é um desafio a que importa responder e que implica uma aposta na qualidade da prescrição, com o apoio de sistemas de monitorização que apoiem decisões e ações mais estruturadas. De acrescentar que outros grandes desafios que o setor do medicamento enfrenta têm sobretudo relação com a sustentabilidade dos sistemas de saúde e por exemplo com a entrada no mercado de um elevado número de novas tecnologias.
– Em que consiste o projeto ‘Desafio Global para a Medicação Segura” e quais os seus objetivos?
– O Centro Colaborador da OMS para a Educação, Investigação e Avaliação da Segurança e Qualidade em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa (ENSP NOVA) foi criado em 2020 e agora redesignado por mais quatro anos, para o período 2024-2028, o que muito nos orgulha, pois reflete o reconhecimento das competências da ENSP NOVA nas áreas referidas e pressupõe um histórico de colaboração, reconhecido e de elevado valor.
Nos últimos quatro anos, a equipa da ENSP NOVA desenvolveu várias atividades em parceria com a OMS e com instituições de referência, a nível mundial, nas áreas das políticas e sistemas de saúde, qualidade em saúde e segurança do doente, com destaque para a colaboração o apoio na elaboração, revisão e disseminação de vários guias, documentos e relatórios relacionados com a segurança do doente.
No plano de trabalhos para os próximos quatro anos (2024-2028), além do reforço e aprofundamento das atividades que têm sido desenvolvidas com a OMS, é de destacar a colaboração no ‘Desafio Global para a Medicação Segura’. A OMS lançou um desafio específico sobre este tema ainda em 2017, identificando as práticas inseguras e os erros relacionados com a medicação como uma das principais causas de danos evitáveis nos cuidados de saúde em todo o mundo. Em 2022, dedicou-se o Dia Mundial para a Segurança do Doente a esta temática.
Com este trabalho estreito com a OMS, pretendemos aumentar a consciencialização sobre este tema dos erros de medicação e práticas inseguras para defender a necessidade de mais ações, concretamente no que se refere à reconciliação medicamentosa, medicamentos LASA (look-alike sound-alike), polimedicação, etc…
– Quais são os desafios da concretização deste projeto?
– A OMS tem metas ambiciosas. Os Estados-Membros foram desafiados a reduzirem os danos graves evitáveis relacionados com medicamentos em 50%, em cinco anos, isto aquando do arranque da iniciativa. Mas ainda há muito trabalho a fazer.
Em Portugal, também o Plano Nacional para a Segurança dos Doentes 2021-2026 salienta a importância da ‘Medicação Segura’ no seu Pilar 5: Práticas Seguras em Ambientes Seguros. Este pilar reforça a necessidade de as organizações de saúde promoverem ações para a segurança do medicamento, dando enfoque à reconciliação terapêutica.
Para o sucesso das iniciativas, a ENSP NOVA acredita que o caminho tem de ser feito com todos, pelo que é essencial envolver os intervenientes do circuito do medicamento, em particular os profissionais de saúde, e também claramente o envolvimento dos doentes ao longo de todo o processo, da prescrição, administração ou uso dos medicamentos. Aliás, este trabalho, para ser conduzido de forma sólida, implica a capacitação dos doentes, familiares e cuidadores, num trabalho que queremos fazer em estreita ligação com as associações de doentes.
A transição digital e uma gestão adequada dos serviços, tanto em termos de infraestruturas, equipamentos, como de capital humano, são também fatores críticos para as metas poderem ser atingidas e todos sabemos que os recursos em saúde estão hoje muito pressionados perante as necessidades crescentes, o que pode ser um desafio à plena concretização dos objetivos.
O conhecimento e compreensão dos eventos adversos, sejam ou não na área do medicamento, são fundamentais num processo de avaliação e melhoria contínua da segurança do doente e da qualidade em saúde e estas são áreas transversais em que a ENSP NOVA tem contribuído com muita evidência e trabalho de proximidade com a comunidade, através do trabalho dos nossos professores, investigadores e alunos.
Muitas destas ideias fazem parte do White Paper Leading the Way to a Healthy Future, documento colaborativo recentemente publicado, liderado pela ENSP NOVA e que contou com mais de 80 parceiros e peritos nacionais e internacionais. Neste documento, são elencadas várias recomendações e ações prioritárias para a construção da saúde pública do futuro, um caminho que só pode ser feito com o envolvimento e capacitação dos cidadãos, dos profissionais de saúde e gestores, com o forte apoio na produção de evidência sólida para apoiar todas as decisões que são tomadas no setor da saúde.
– De que modo aplicação do ‘Desafio Global para a Medicação Segura’ poderá melhorar os ecossistemas da saúde, nomeadamente o português?
As estimativas apontam para que a incidência de eventos adversos em hospitais possa atingir valores que variam entre os 3,7% e os 16,6%, (em Portugal num estudo coordenado por Paulo Sousa da ENSP NOVA, esse valor foi de 12,5%), o que tem naturalmente impacto em termos clínicos, mas também económicos e sociais. Considera-se que 40% a 70% destes eventos adversos seriam preveníveis (previsíveis) ou evitáveis, pelo que a implementação de projetos e de boas práticas que aumentem a segurança em todo o circuito do medicamento terão um impacto direto nos resultados em saúde e, acima de tudo, na qualidade de vida dos doentes.
– Que medidas/estratégias poderão ser implementadas na prática no âmbito do projeto? Quais os resultados esperados?
Em Portugal, existe hoje uma atenção crescente para os temas relacionados com a segurança do doente e com a gestão do risco clínico. Para conseguirmos melhores resultados, precisamos de aumentar a nossa capacidade de identificar monitorizar e supervisionar os riscos na utilização dos medicamentos. Este é um caminho que beneficia os profissionais, os doentes e a sociedade como um todo, ao aumentar a sua confiança no medicamento, enquanto tecnologia de saúde que é a mais utilizada em todos os sistemas de saúde.
Da emissão de normas e orientações até à implementação de programas e atividades de formação que envolvam todos os profissionais na adoção e práticas seguras, terminando na avaliação e certificação dos resultados, são vários os passos a dar para robustecer a resposta nesta área e aumentar a qualidade da prestação de cuidados de saúde. Reforçamos que este caminho precisa de ser acompanhado de uma cultura de recolha e análise de dados sistemática, sendo a academia uma parceira de excelência para trilhar o caminho que precisamos de fazer para a minimização dos eventos adversos e uma melhor saúde para todos.
– Que papel os farmacêuticos poderão ter ao nível deste projeto?
O Farmacêutico é uma peça fundamental para o sucesso da transformação que precisamos de implementar, ao ser um profissional com elevada diferenciação técnico-científica e que acompanha as várias fases de utilização do medicamento. É assim crucial para evitar eventos adversos que vão desde problemas na identificação dos doentes até a deteção de interações ou outros efeitos adversos. O trabalho em equipa e multidisciplinar é fundamental na saúde e na área da cultura de segurança do doente não é exceção. Também não é possível não incluir a transição digital que é uma área de investimento fundamental para podermos fazer mudanças sólidas e o trabalho dos farmacêuticos será muito beneficiado se for apoiado com a digitalização e ferramentas como a inteligência artificial (IA). Contudo, é de salientar que este caminho de mudança implica o investimento na formação dos profissionais ao longo da vida profissional, para que as novas ferramentas sejam utilizadas de forma plena, útil e segura para todos.
– E as farmácias comunitárias?
As farmácias comunitárias são, por excelência, um espaço de proximidade com os cidadãos ao longo de todo o seu ciclo de vida. Como já dizia António Arnaut, as farmácias são uma espécie de braço longo do Serviço Nacional de Saúde e, por isso, faz todo o sentido que atuem em articulação e complementaridade. Pelo acesso privilegiado que têm aos cidadãos e pela confiança que estes têm no seu farmacêutico, as farmácias são também espaços muito importantes para a promoção da saúde e a prevenção da doença, através de projetos de aumento da literacia e de capacitação dos cidadãos que podem conduzir a melhores escolhas, a decisões mais informadas e a uma melhor adesão à terapêutica.