Recentemente, os estudos sobre tabagismo têm-se debruçado não apenas sobre a prevalência de fumadores e o impacto da luta contra o tabaco, mas também sobre a distribuição dos fumadores pelos grupos socioeconómicos. Os resultados destes estudos são muito claros, demonstrando que o tabagismo é muito mais frequente nas pessoas com menor educação, menor rendimento ou pior situação face ao emprego, apesar do preço elevado dos cigarros. Por exemplo, um estudo recente demonstra que, entre os homens, um baixo nível de educação está associado a um risco acrescido em 50% de ser fumador (1). Um artigo recente do jornal Le Monde sobre este tema era eloquentemente intitulado “Fumar é cada vez mais um marcador social” (30/5/2017).
No entanto, o debate existe sobre esta associação entre estatuto socioeconómico e tabagismo, na forma como deve ser interpretada. Existem correntes que defendem que se deve agir no sentido de atenuar ou corrigir as “desigualdades” no tabagismo, sugerindo que estas constituem uma injustiça social que deve ser combatida. No entanto, outras correntes consideram que as desigualdades são inevitáveis e que, por isso, o tema não é politicamente relevante, defendendo que as desigualdades só seriam resolvidas se o hábito fosse alargado a toda a população, independentemente do estrato social.
A minha posição sobre este tema está alinhada com a primeira corrente, que defende que as desigualdades são uma questão política relevante. Apresento seguidamente alguns argumentos justificam esta posição (2).
O primeiro argumento é que fumar é raramente uma escolha; é marcado pelo meio, pelo contexto, e portanto é potencialmente injusto porque não resulta de uma decisão pessoal. Os hábitos tabágicos ganham-se na adolescência, aos 15-16 anos, quando nem o corpo nem a mente estão plenamente formados para integrar os perigos dos comportamentos e para que se pense e projete o futuro. Ao contrário de outros comportamentos de risco (andar sem cinto, ultrapassar os limites de velocidade, ter relações sexuais não protegidas, etc.), começar a fumar é um comportamento com difícil retorno porque cria dependência física e mental.
Ora, os adolescentes de meio desfavorecido começam a fumar em meios onde o tabagismo é “normal” porque os pais com menor educação e rendimento fumam mais, porque as normas em casa, na escola ou noutros locais que frequentam são mais permissivas, porque os amigos também fumam. Um adolescente de meio favorecido precisará de fortes doses de independência de espírito, anti-conformismo e coragem para fumar contra todos os padrões sociais do seu meio, enfrentando a estigmatização dos amigos e da família. O adolescente de meio desfavorecido precisará das mesmas doses mas para ser não fumador.
O mesmo acontece nos adultos. Deixar de fumar quando todos os amigos e colegas fumam impõe um afastamento social. Também não é fácil deixar de fumar quando não existe possibilidade de obter terapias de substituição ou consultas de cessação, por exemplo por razões financeiras. A desigualdade no tabagismo é, portanto, injusta porque se fumar é uma escolha, trata-se de uma escolha fortemente condicionada pelas circunstâncias.
Finalmente, a desigualdade no tabagismo é injusta porque é evitável. Políticas de luta contra o tabagismo adequadas, que tenham em conta este gradiente social, são possíveis e funcionam. O exemplo mais óbvio são os impostos sobre os cigarros, que reduzem mais a prevalência dos mais desfavorecidos. Também a proibição generalizada de fumar nos locais públicos reduz as desigualdades sociais no tabagismo por ter mais impacto nos mais desfavorecidos. Pelo contrário, proibições implementadas de forma voluntária e não obrigatória aumentam as desigualdades porque esta implementação ocorre mais nos meios mais favorecidos que já eram mais sensíveis aos danos do tabagismo.
Contudo, estas políticas que motivam a cessação tabágica não terão sucesso se, junto com estes elementos motivadores, não existir apoio para efetivamente deixar de fumar. Caso contrário, a taxação do tabaco irá apenas penalizar os orçamentos das famílias mais pobres, empobrecendo-as ainda mais e privando-as do acesso a outros consumos. Assim, o acesso às consultas de cessação ou terapias de substituição, embora não seja suficiente para reduzir o gradiente social no tabagismo, é necessário para atingir este objetivo. É uma questão central de justiça social ligada a saúde.
(1) Alves, J., Kunst, A.E. and Perelman, J., 2015. Evolution of socioeconomic inequalities in smoking: results from the Portuguese national health interview surveys. BMC Public Health, 15(1), p.311.
(2) Estes argumentos foram inspirados pelo excelente texto de Kristin Voigt, intitulado “Smoking and social justice” (Public Health Ethics 2010, 3(2):91-106).
Julian Perelman,
Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa
(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores)