Funerais higiénicos considerados cruciais para inverter a epidemia do Ébola 444

Funerais higiénicos considerados cruciais para inverter a epidemia do Ébola

31 de outubro de 2014

O medo de que o Ébola não desapareça e se torne uma doença endémica na África Ocidental, com possibilidade de viajar para outros locais, está a obrigar a comunidade internacional a encontrar soluções. Dois artigos científicos, publicados esta quinta-feira na “Science” e citados pelo “Público”, vêm ao encontro desta necessidade — e um deles mostra que impedir novas transmissões do vírus durante os funerais na Libéria pode ser a medida determinante para pôr o fim à epidemia.

Na África Ocidental, onde a epidemia está a ser mais devastadora, as práticas nas cerimónias fúnebres são muito diferentes das que conhecemos por exemplo na Europa. «Incluem lavar, tocar e beijar os corpos, que ainda podem transmitir o Ébola», descreveu Jan Medlock, investigador da Universidade Estadual do Oregon (EUA), e autor de um dos artigos.

O vírus do Ébola está presente no sangue, nas fezes, na urina ou no suor dos doentes. Se um destes fluídos chegar à boca, ao nariz, a uma ferida ou aos olhos de uma pessoa saudável, o vírus pode “saltar” para um novo hospedeiro. Por não andar no ar, o Ébola não é fácil de transmitir. Mas nos funerais na Libéria, o contágio é frequente. Por isso, os cientistas consideram-no, no artigo da “Science”, como os «momentos de super-contágio». «É imperativo que a transmissão nos funerais seja interrompida», defendeu Jan Medlock, num comunicado da sua universidade.

Através de modelos matemáticos e do número de casos registados, os investigadores concluíram que cada pessoa doente na Libéria está a transmitir o vírus a 1,63 pessoas, em média. Enquanto este valor não ficar abaixo de um, o número de casos vai aumentar. Esta equipa estudou medidas para travar a progressão da epidemia, excluindo medicamentos ou vacinas específicos para o vírus, que para já são inexistentes. Segundo os cálculos, se a transmissão do Ébola nos funerais acabasse de vez, aquele valor passaria a 0,93.

Por outro lado, se se conseguisse aplicar «uma estratégia com uma eficácia de 60% para funerais sanitários, para o isolamento de casos de Ébola e para a monitorização de pessoas que tiveram contactos com doentes, então poder-se-ia reduzir o número diário de novos casos de Ébola para sete a 1 de dezembro [de 2014] e para zero a 15 de março [de 2015]», segundo o artigo, mostrando que estas medidas resultariam na eliminação da epidemia, de acordo com o modelo utilizado.

Os números da epidemia revelados na quarta-feira pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a progressão da epidemia poderá estar já a desacelerar na Libéria. Até 27 de outubro, 13.703 pessoas foram infetadas pelo vírus e 4.920 morreram. Além da Libéria, da Serra Leoa e da Guiné-Conacri — os três países mais afetados —, estes números incluem o Mali (onde uma criança doente vinda da Guiné-Conacri acabou por morrer), a Nigéria e o Senegal (onde o fim do surto já foi declarado), os Estados Unidos e a Espanha. Devido à revisão da informação, há menos 300 casos na Libéria do que se pensava e há mais 200 na Serra Leoa. Os responsáveis da OMS admitem que os números anteriores vão continuar a ser revistos.

Ainda assim, os funerais e as admissões de doentes nos centros de tratamento do Ébola estão a diminuir na Libéria e atingiu-se uma estagnação dos casos confirmados por análises, de acordo com Bruce Aylward, responsável da OMS. «Estamos sem dúvida a ver uma diminuição de novos casos», disse o responsável, citado pela agência Reuters.

Mas ainda não é altura para respirar de alívio. Bruce Aylward disse ainda que ficaria «aterrorizado» se a sua mensagem fosse interpretada como se a epidemia estivesse controlada. «Esta é uma doença muito, muito perigosa. Basta dois funerais correrem mal e pode iniciar-se toda uma nova cadeia de transmissões e a doença aumentar de novo», exemplificou.

A União Internacional das Sociedades de Imunologia pede, por seu lado, o desenvolvimento rápido de medicamentos e vacinas, num artigo de opinião publicado esta semana na revista “Frontiers in Immunology”. «Este surto de Ébola é um desastre sem precedentes. Se a transmissão não for bloqueada, o Ébola pode tornar-se endémico», alertou Clive Gray, um dos autores do artigo, da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, citado num comunicado da união.

Outro desafio lançado no artigo de opinião é o da compreensão da variabilidade da resposta imunitária humana ao vírus. Apesar de a mortalidade do Ébola andar à volta de 70% no atual surto, há pessoas com sintomas mais leves e que sobrevivem.

O segundo artigo publicado nesta quinta-feira na “Science” começa a responder a este tipo de questões. Pela primeira vez, uma equipa conseguiu criar linhagens de ratinhos que, quando são infetados por uma estirpe do Ébola adaptado a estes roedores, têm sintomas semelhantes aos dos humanos. Os ratinhos de uma das linhagens perdiam peso, mas acabavam por recuperar. Já os ratinhos de outra linhagem apresentavam hemorragias, como alguns doentes humanos, e morriam.

Embora o vírus tenha um dispositivo genético que causa a rutura do sistema imunitário, certos genes dos ratinhos respondiam melhor do que outros ao ataque do Ébola numa das linhagens, promovendo a reparação dos vasos sanguíneos e a produção de glóbulos brancos que lutavam contra a infeção. Michael Katze, investigador da Universidade de Washington (EUA), e um dos autores deste trabalho, defendeu que a descoberta pode ajudar na atual epidemia: «Esperamos que os investigadores possam aplicá-la rapidamente para desenvolverem terapêuticas e vacinas experimentais».