Imunes à desconfiança 586

Em 1998 um estudo publicado na revista médica The Lancet afirmava ter encontrado uma relação entre autismo e a vacina contra o sarampo. Perante um resultado inédito para a história global, a cobertura dos media acabou por prestar credibilidade em massa a um resultado que viria a ser, pouco depois, desvendado como fraude. A dissipação da notícia levou a uma onda de desconfiança de tal ordem que o mundo da investigação foi forçado a investir na prova contrária de modo a minimizar os danos causados. Ainda assim o mito deu força ao já existente movimento anti-vacinação que tem vindo a crescer nos últimos anos, principalmente nos Estados Unidos da América e na Europa.

A vacinação é oficialmente considerada das mais eficazes intervenções de saúde pública sempre e permitiu a erradicação de várias doenças infecciosas. No entanto, essa mesma eficácia poderá ter gerado uma onda de despreocupação com as doenças ainda existentes nos países mais desenvolvidos. Um dos argumentos por detrás da discussão é exactamente de que as doenças que temos hoje em dia não necessitam tratamento profilático e que as vacinas não nos protegem contra os problemas actuais. Este tipo de pensamento foi em parte responsável pelo acontecimento de recentes surtos de sarampo durante os quais várias crianças entraram em estado crítico que necessitaram de tratamento hospitalar.

Também no que diz respeito á legislação na Europa a escolha não é unanime. Enquanto que em países como a Alemanha, o Reino Unido, Holanda, Suíça e Espanha a vacinação deixou de ser obrigatória por completo, em Portugal, Bélgica e França a obrigatoriedade mantém-se (para determinadas doenças). Será que, da mesma forma, se se tornasse facultativo em Portugal as taxas de cobertura decresciam?

A eficácia da utilização de vacinas é assim ainda considerada um tema discutível, apesar da evidência científica ser clara. Talvez o problema seja então o abismo que existe entre o mundo da ciência e a população que, para além de dificultar o acesso e a compreensão da informação, não promove a confiança no sistema.

Yaquba et al. (2014) fornece uma visão consolidada das atitudes dos profissionais de saúde e do público em relação à vacinação na Europa. O estudo avalia tanto a propensão para recusar, como para desencorajar outros a recusarem a vacinação. Foram verificadas atitudes de hesitação, incluindo por parte de pessoas que ainda não tinham rejeitado a vacinação. O estudo aponta para uma necessidade de aumentar a confiança no sistema, que foi identificada como uma das razões para atitudes de hesitação, talvez mais do que falta de informação.

Em Itália, dados do Instituto Nacional de Saúde mostram que entre 2013 e 2014 a cobertura para a segunda dose da vacina contra a sarampo-papeira-rubéola (MMR) caiu de 83 para 82 por cento em todas as regiões italianas, apesar da cobertura global continuar a ser de 94,7 por cento. Já na Alemanha a taxa de vacinação contra o sarampo está abaixo da recomendada pela Organização Mundial de Saúde.

Também um artigo publicado na revista Euroactive em 2015 alerta para a crescente desconfiança dos Europeus na eficácia das vacinas contra a prevenção de doenças infeciosas. Nomeadamente, de acordo com o Instituto Nacional para a Prevenção e Educação para a Saúde de França, a desconfiança da vacinação aumentou de 10% em 2005 para 40% em 2010.

Esta recente evidência aponta para a necessidade de investir na investigação sobre os motivos e os mecanismos por detrás desta tendência, bem como medir os potenciais danos que daí possam advir.

Até ao momento, o crescente movimento anti-vacinação parece não ter ganho tanto protagonismo em Portugal. Ainda assim, com a fácil mobilidade e migração dos dias de hoje, mais tarde ou mais cedo, as consequências serão sentidas além-fronteiras. É assim necessário compreender a dimensão do problema e fomentar medidas que, acima de tudo, protejam a saúde pública global.

Sara Valente de Almeida

Referências:

[1] Candau, M. (2015). Distrust of vaccinations on the rise across EU. In EurActiv.

[2] Marques, A., Novais, V. e Andreia, C. (2015) Vacinar ou não vacinar as crianças? Vale a pena perguntar? Ana Cristina Marques. In Observador.

[3] Paravicini, G. (2016). Italy fights vaccines fear. In Politico.

[4] Parker, L. (2015). The Anti-Vaccine Generation: How Movement Against Shots Got Its Start. National Geographic.

[5] Yaquba, O., Castle-Clarkeb, S., Sevdalisc, N. and Chatawayd, J. (2014). Attitudes to vaccination: A critical review. Social Science and Medicine, vol.112.

(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)