Filipa Machado Vaz
Manager in Business Consulting in Healthcare
Professora convidada na Nova School of Business and Economics
Membro do Health Economics & Management Knowledge Center da NovaSBE
Há exatamente dois anos (novembro de 2022), escrevia um artigo sobre o futuro da saúde, abordando o impacto que a transformação digital poderia ter na criação de um sistema de saúde mais acessível a todos, após o maior impulsionador de desenvolvimento tecnológico em saúde: uma pandemia global com proporções históricas
Testemunhávamos a criação de vacinas desenvolvidas em tempo recorde e uma aceleração na implementação de tecnologias em saúde, que antecipou a uma revolução tecnológica na saúde em mais de uma década. Previmos uma revolução neste sector, maximizada por uma maior acessibilidade potenciada pela tecnologia e por uma maior equidade no acesso. Um cenário de saúde global mais acessível, inclusivo, justo e equitativo.
As instituições desenvolveram, em tempo recorde, soluções tecnológicas para um novo perfil de utente: o cliente digital, que surgiu durante a pandemia e que pretende manter cuidados de saúde online, com foco na prevenção e proximidade, através do acesso digital e suportado pelos seus dados clínicos acumulados, analisados e integrados no seu registo de saúde único.
Idealizámos a utilização da Inteligência Artificial em saúde, suportada numa medicina personalizada, com diagnósticos específicos e individualizados, promovendo intervenções e tratamentos adaptados com base em milhões de dados que agora podiam ser utilizados de forma eficiente e consequente. Antecipámos uma verdadeira revolução, que não deixaria ninguém para trás, acessível através dos meios tecnológicos que utilizamos diariamente.
Desafios da Transformação Digital na Saúde
A COVID-19 transformou as tendências emergentes em saúde em modelos operacionais, incluindo mudanças no comportamento e nas preferências dos consumidores, as primeiras tentativas de integração da Inteligência Artificial em saúde, o rápido avanço das tecnologias digitais, novos modelos de prestação de cuidados e uma inovação clínica sem precedentes.
O papel dos profissionais de saúde também se transformou, que agora demonstram interesse em utilizar novas tecnologias e ferramentas de Inteligência Artificial no diagnóstico e tratamento. Passámos a considerar o estado global da saúde numa perspetiva multifatorial, abrangendo a saúde física, psicológica, social e emocional, influenciada não apenas por fatores biológicos, mas também por fatores sociais, económicos e ambientais.
Observámos um crescimento sem precedentes da telemedicina. Aplicações e chatbots de Inteligência Artificial, disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, facilitam uma assistência sem precedentes em termos de resposta e alcance.
Contudo, o que se previa ser um aumento global no acesso aos cuidados de saúde, impulsionado pelo uso de tecnologias, acabou por impactar desproporcionalmente as populações historicamente marginalizadas e de baixos rendimentos, aumentando as barreiras de acesso para milhões de pessoas em todo o mundo (OMS, 2022). Estes dados, embora não novos, evidenciaram as discrepâncias no acesso aos sistemas de saúde, as suas fragilidades e as desigualdades nos determinantes sociais da saúde.
Em Portugal, a ambição e os desafios são ainda maiores. Pioneiro na União Europeia pela inovação na prescrição digital de medicamentos, o país ainda enfrenta atrasos substanciais em aspetos centrais do desenvolvimento tecnológico na saúde, como o acesso aos dados dos utentes, a digitalização e a interoperabilidade entre diferentes prestadores de serviços.
Apesar dos investimentos significativos, superiores a 570 milhões de euros entre 2015 e 2024 pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, com o objetivo de modernizar os sistemas e operações do SNS, o sistema continua a enfrentar dificuldades substanciais, como a lenta modernização de alguns sistemas essenciais e a ausência de interoperabilidade intra e entre os sistemas hospitalares. Consequentemente, nenhum médico consegue aceder ao registo de saúde único do utente, o que inviabiliza o uso de novas tecnologias que dependem do acesso a essas informações.
A implementação de modelos de inteligência artificial baseada em LLM (Large Language Models) permanece limitada pela falta de agregação dos dados num repositório centralizado. A ausência de comunicação entre as entidades impede uma verdadeira transformação digital, enquanto o cidadão permanece sem acesso integrado à saúde.
Uma Nova Esperança
O Plano de Emergência em Saúde, elaborado pelo Ministério da Saúde e coordenado por Eurico Castro Alves, traz uma nova esperança e assume como um dos seus principais compromissos o desenvolvimento de um programa para saúde digital integrada.
Posicionando-se como “uma peça estratégica para a transformação estrutural da saúde em Portugal, reforçando o Serviço Nacional de Saúde e proporcionando uma resposta integrada e eficiente em benefício das pessoas e da saúde pública”, o plano considera os sistemas de informação como uma ferramenta central para “articular o atendimento ao utente entre entidades públicas, sociais e privadas”. A sua implementação permitirá “a partilha de informações sobre episódios clínicos, diagnósticos e tratamentos, bem como a racionalização de recursos, evitando a duplicação de exames, consultas e outros atos clínicos.”
A implementação de um registo eletrónico de saúde único assume especial relevância ao promover “a centralização e disponibilização uniforme dos dados de saúde da população, permitindo que, independentemente do local de atendimento, os profissionais de saúde tenham acesso à mesma informação, incluindo histórico médico, alergias, medicação e resultados de exames.” Essa integração facilitará diagnósticos mais precisos, tratamentos eficazes e a redução do desperdício.
A interoperabilidade dos dados na saúde ganha assim especial importância para que registos eletrónicos e dispositivos médicos possam comunicar, seguindo normas internacionais.
Trata-se de um plano ambicioso, cuja implementação é urgente para estabelecer um modelo transformacional na saúde—um modelo menos oneroso, que atenda às necessidades de todos os intervenientes do ecossistema: prestadores, profissionais, utentes e sociedade.
E como em 2022, termino sublinhado que o futuro da saúde é hoje. E, ou estamos a construir o futuro, ou corremos o risco de nunca mais o recuperar.
Fontes
Plano de Emergência e Transformação na Saúde – SNS
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