Inteligência Artificial na Farmácia Hospitalar: O que pensam os farmacêuticos, que soluções já existem e como começar a implementar 328

As potencialidades da inteligência artificial (IA) na farmácia hospitalar “são imensas, ao ponto de, se as elencarmos, estarmos a ser pouco exaustivos”, declaram Sérgio Gomes, tesoureiro da direção da Associação Portuguesa de Farmacêuticos Hospitalares (APFH), e Henrique Pereira, farmacêutico hospitalar da Fundação Champalimaud, acrescentando que “poderemos antever grandes alterações na atividade farmacêutica, desde a simples otimização de processos de trabalho, processos logísticos, aquisições, gestão mais eficientes das alternativas terapêuticas disponíveis, até mesmo a análise quase em tempo real da relação custo-efetividade das terapêuticas por nós avaliadas, disponibilizadas e sugeridas”.

Legenda: Sérgio Gomes (Créditos: APFH)

De acordo com os farmacêuticos hospitalares, “já conhecemos algumas ferramentas que, geradas a partir de algoritmos inteligentes, utilizam os dados da população (local ou não) como modelo a aplicar em situações clínicas diárias específicas onde o farmacêutico intervém (ou deve intervir). Mas, de facto, só agora estamos a reconhecer as verdadeiras potencialidades da automação, do auxílio à decisão clínica e farmacêutica por parte da IA, não porque não existissem antes, mas porque só na última década estamos a ficar mais sensíveis para a sua existência e da importância que é termos um especialista do medicamento presente no seu desenvolvimento e utilização diária”.

 

As potencialidades

A IA “tem um enorme potencial na farmácia hospitalar ao otimizar processos e melhorar a segurança do doente. Facilmente encontramos áreas onde aplicar IA, como a gestão eficiente de inventário, prevendo a procura de medicamentos e evitando desperdícios ou ruturas de stock”, concorda José Mesquita, strategy manager da Glintt Life, área de Hospitals.

A IA pode ainda ter um papel preponderante, como refere o responsável, “na personalização de terapêutica, sugerindo o medicamento mais adequado, com a dose adequado e no momento mais adequado com base no perfil do doente. Além disso, pode analisar dados clínicos em tempo real, prevenir interações medicamentosas e apoiar a monitorização de reações adversas de forma mais célere em comparação com os métodos manuais”.

A aplicabilidade da IA na farmácia hospitalar passa também pela logística. Por exemplo, no que se refere a dispensa automatizada, “a IA e a robótica garantem a preparação e entrega exata de medicamentos, reduzindo os erros tipicamente associados a estes processos”, conclui José Mesquita.

 

O que já se faz (na prática)

As farmácias hospitalares já incorporam a IA no seu dia “há muitos anos sem nos darmos conta: O estudo farmacocinético é o mais transversal entre farmácias hospitalares. Como um modelo de estimação bayesiana com base em populações específicas, o farmacêutico introduz os dados disponíveis ou já estão introduzidos, o mesmo produz um conjunto de resultados com variância suficiente para o farmacêutico tomar uma decisão e sugerir doses e frequências. Qualquer aplicação TDM é um modelo de IA específica para aquela mesma tarefa”, explicam Sérgio Gomes e Henrique Pereira.

José Mesquita concorda: “atualmente, várias soluções de IA já estão implementadas ou disponíveis para farmácias hospitalares. Entre elas, estão sistemas de apoio à decisão clínica, que analisam prescrições em tempo real e verificam interações medicamentosas ou doses incorretas. Este processo permite que o farmacêutico se foque nos doentes mais complexos e que requerem maior validação de parâmetros do perfil farmacoterapêutico”.

A sumarização de dados clínicos é, de acordo com o strategy manager, outra vertente “onde a IA pode assumir um papel de destaque proporcionando ao farmacêutico a informação certa no momento certo. Estas tecnologias melhoram, assim, a segurança do doente ao minimizar erros de medicação”.

 

Resultados práticos

Os resultados práticos das soluções de IA nas farmácias hospitalares são, segundo José Mesquita, “notáveis”. O strategy manager da Glintt Life deixa alguns exemplos:

  • “A gestão automatizada de inventário resulta em poupança de tempo ao reduzir a necessidade de controlo manual e ao garantir que os medicamentos estão sempre disponíveis.”
  • “Nos processos de dispensa de medicamentos, a automação com IA elimina etapas manuais, permitindo uma distribuição mais rápida e precisa, o que resulta em menos tempo gasto na preparação de doses e na entrega aos doentes. O maior benefício é, sem dúvida, a redução dos erros relacionados com o medicamento, o que aumenta a segurança e reduz custos associados a tratamentos.

Neste contexto, “a IA auxilia os farmacêuticos a tomar decisões mais informadas, otimizando o tempo gasto na análise de interações e ajuste da terapêutica”, conclui o responsável

 

O papel do farmacêutico hospitalar

Este profissional tem, “por natureza, uma grande curiosidade no processo científico na procura da contínua melhoria e otimização do uso do medicamento e das tecnologias da saúde”, declaram Sérgio Gomes e Henrique Pereira, acrescentando que, por isso, “o advento da IA e todas as tecnologias associadas, constituem uma verdadeira responsabilidade do farmacêutico, uma vez que podem ser importantes moduladoras de resultados em saúde”.

Neste sentido, revelam que “não estamos muito longe da regulamentação de modelos de IA como dispositivos médicos de apoio à decisão clínica, e do seu uso comum na prestação de cuidados de saúde. E quem mais do que o farmacêutico para orientar o seu correto uso e o seu contínuo desenvolvimento?”.

Henrique Pereira (Créditos: Henrique Pereira)

Questionados se consideram que a utilização da IA na farmácia hospitalar poderá ter um lado negativo ou desvantagens, os elementos da APFH respondem que “julgamos que não há lados negativos nem desvantagens. O farmacêutico de outros tempos que faria cálculos manuais, porventura teve algum lado negativo ou desvantagem quando o uso de calculadoras e computadores se tornou prática comum?”. Na ótica dos elementos da APFH, não houve desvantagens nessa altura e, por isso, asseguram que veem “a IA da mesma forma: o seu uso nunca irá substituir o julgamento final do farmacêutico, e mesmo que esteja perto de o fazer, a decisão em saúde como desafio ético obrigará à presença de um profissional de saúde com conhecimentos específicos sobre o medicamento, o Farmacêutico, bem como o profissional de saúde com conhecimentos da clínica, o Médico”.

Assim sendo, explicam que “interpretar um modelo, seja de IA ou outro mais clássico, acarreta um processo de pensamento crítico onde são avaliados os erros sistemáticos (vieses) e os erros aleatórios (intrínsecos em qualquer modelo estatístico) e o que estes representam no uso do medicamento, portanto no fim da linha é muito pouco provável não haver ninguém a tomar decisões”.

 

A IA vai substituir o farmacêutico hospitalar?

Na verdade, apesar de tudo, “não sabemos”, afirmam Sérgio Gomes e Henrique Pereira, explicando que “podemos tentar prever o que se irá passar daqui a uma década e dizer com alguma segurança que estamos algo protegidos pela ética em saúde. No atual paradigma, a decisão em saúde terá sempre de ter um elemento humano no fim do processo, farmacêutico ou não”.

Neste sentido, argumentam que “podemos pensar nos exemplos que temos atualmente: usamos a dupla verificação em farmácia hospitalar como um garante de segurança do doente; validamos prescrições de médicos especialistas porque o erro pode existir no melhor especialista; documentamos que os valores que usamos para determinada fórmula foram realmente os mais recentes; criticamos artigos científicos em busca de vieses que possam colocar em causa os resultados em saúde; e discutimos força de evidência e de recomendação de determinada tecnologia de saúde. No fim da linha, não faz parte da natureza do farmacêutico (ou qualquer profissional de saúde) assumir verdades como absolutas, ou probabilidades questionáveis”.

Os farmacêuticos chamam ainda a atenção que “substituir o farmacêutico hospitalar ou qualquer outro da sua equipa, por variadíssimos motivos, acarreta mudanças profundas na estrutura da farmácia hospitalar e dos centros onde se encontram. Podemos assumir que essas substituições podem incrementar riscos para o doente e para as instituições face ao que sabemos à data. Basta imaginar o que aconteceria se estes atores desaparecessem amanhã e nas consequências que daí se criariam”.

Por estas razões, Sérgio Gomes e Henrique Pereira acreditam que “será pouco provável haver uma verdadeira substituição no sentido da palavra. Será mais provável a adaptação das funções dos farmacêuticos e sua equipa à realidade que a IA irá introduzir: tarefas repetitivas totalmente automatizadas ou quase automatizadas; aumento do foco na definição de políticas em saúde com base na evidência gerada pela IA, localmente ou não; vigilância em tempo real de potenciais problemas com medicamentos ou tecnologias em saúde; tarefas práticas/laboratoriais e de grande risco que dificilmente podem ser totalmente automatizadas; e, claro está, o contributo valioso do farmacêutico na melhoria contínua de modelos de IA à luz da atual ética em saúde”.

Também José Mesquita admite que a IA “poderá substituir certas funções rotineiras e administrativas do farmacêutico hospitalar, como a gestão de inventário e a dispensa de medicamentos, uma vez que estas tarefas podem ser realizadas com maior precisão por sistemas automatizados. No entanto, não substituirá o farmacêutico no que diz respeito à decisão clínica, interação com o doente e decisões terapêuticas complexas”.

Neste sentido, a “IA atuará como uma ferramenta de apoio, complementando as capacidades do farmacêutico, mas nunca em substituição do seu papel crítico nas equipas multidisciplinares e na comunidade”.

 

A farmácia do futuro

Com a adesão total à IA, José Mesquita declara que a farmácia hospitalar “será muito mais automatizada e eficiente. Os sistemas de IA estarão completamente conectados no processo de personalização de tratamentos, ajustando o plano de tratamento com base no perfil do doente e em dados clínicos em tempo real”.

José Mesquita (Créditos: Glintt Life)

O especialista da Glintt Life refere ainda que a robotização avançada “irá permitir uma preparação ainda mais precisa de medicamentos complexos, como quimioterapia e nutrição parentérica, minimizando o erro humano. A monitorização contínua de doentes será uma regra e não a exceção, com a IA a detetar e responder a alterações no estado de saúde do doente de forma proativa”.

Além disso, ainda segundo strategy manager, “as farmácias hospitalares serão centros de análise de big data, onde a IA ajudará a prever perfis de uma população-alvo e otimizar tratamentos em larga escala. O foco será na personalização, segurança e eficiência, com farmácias mais integradas no processo clínico geral”.

 

A necessidade de recolher dados (com qualidade)

Porém, atualmente, “o nosso maior problema atualmente começa nos dados (e na sua qualidade) que são recolhidos a todo o momento. O farmacêutico, como fiel depositário desses dados, deve começar a acautelar a importância de ter esses mesmos dados recolhidos de forma reprodutível, com qualidade, e minimamente estruturados, caso contrário, construir modelos de IA específicos e com algum nível de confiança torna-se impossível”, afirmam Sérgio Gomes e Henrique Pereira.

Dito isto, o maior problema atual nas farmácias hospitalares na área da IA “prende-se com a cultura da importância dos dados, da sua recolha sistemática (onde a automatização deve ser a grande aposta) e da sua qualidade”, sendo que “não podemos dizer que esta cultura esteja ainda totalmente presente em toda a farmácia hospitalar portuguesa”.

Outro grande problema, ainda da perspetiva dos elementos da APFH, “é a interoperabilidade desses mesmos dados, pois nem todos os dados são recolhidos da mesma forma, com o mesmo significado, ou com a mesma frequência entre centros. Este último problema não é impeditivo de construir um modelo de IA qualquer suficientemente robusto, mas atrasa o seu desenvolvimento ou introduz vieses difíceis de serem ignorados nos resultados finais”.

Em suma, um dos calcanhares de Aquiles das farmácias hospitalares é “a ausência de uma cultura de dados de qualidade ou a sua fraca implementação. Há muita tentação em começar a abordar a IA em estádios avançados do seu desenvolvimento sem ter em conta que o processo começa na qualidade dos dados que dispomos”, referem os farmacêuticos, relembrando ainda “a fraca partilha de dados entre instituições e a necessidade de formação em ciência de dados nos farmacêuticos hospitalares para que haja um verdadeiro avanço”.

 

Como começar a implementar soluções de IA

Para uma farmácia hospitalar se modernizar com IA, o primeiro passo, de acordo com José Mesquita, “é avaliar as necessidades específicas e identificar áreas onde a IA pode ser mais útil, como as referidas anteriormente”. Depois, é necessário “investir em infraestrutura tecnológica, como sistemas de informação integrados, que permitam a recolha e análise de um grande volume de dados”.

A farmácia precisa ainda, segundo o strategy manager da Glintt Life, de “formar a equipa para utilizar as novas ferramentas e garantir que a segurança e privacidade dos dados dos doentes sejam respeitadas”.

Por fim, “é essencial também manter uma integração com as políticas de saúde e regulamentação em vigor, para garantir que as soluções implementadas são seguras e eficazes”, sendo que “a parceria com fornecedores de tecnologia especializados, pode facilitar o processo”, conclui José Mesquita.