Farmacêutica de formação, líder da estratégia dos produtos de machine learning e Inteligência Artificial (IA) da Google, portuguesa de berço, a Head of Community for Developers Relations olha com desassombro para as empresas portuguesas, para as oportunidades e ameaças da tecnologia e para o futuro da espécie.
MARKETING FARMACÊUTICO — O que é que uma farmacêutica faz na Google?
Joana Carrasqueira — Uma farmacêutica pode fazer muita coisa na Google. No meu caso, lidero toda a estratégia de introdução no mercado de produtos de machine learning e inteligência artificial (IA). Enveredei por esta área porque tinha grande interesse em perceber como é que a tecnologia ia impactar as mais variadas indústrias em larga escala e também para tentar perceber os mecanismos da IA, tentando entender o quão diferente é da inteligência humana. Como farmacêutica, com um background científico, tinha muita curiosidade por esta esta parte da tecnologia e foi assim que cheguei à Google.
O que é uma Community For Developer Relations, a área que a Joana lidera?
É uma área que não existe em Portugal, onde esta indústria praticamente inexistente, e é toda a área que faz a advocacia da tecnologia em si nas comunidades de programadores e em toda a população em geral. Se fizermos uma comparação da nossa área com a Indústria Farmacêutica (IF), é quase como se fossemos o Public Health. Queremos educar e chegar ao maior número de pessoas possível, explicando como é que funcionam estas tecnologias, como é que vão ter um impacto no futuro das indústrias e, claro, fazer com que os programadores estejam equipados das melhores ferramentas, para que possam desenvolver sistemas tecnológicos que vão ao encontro das expectativas dos mais diferentes profissionais, das mais diversas áreas. Um programador pode desenvolver a melhor ferramenta, mas tem de a adequar às necessidades da indústria e das pessoas que a vão utilizar. Pode ser um sistema informático para gestão farmacêutica, pode ser uma base de dados para a IF que ajude a tomar decisões. Então, é preciso que os programadores colaborem com os decisores da IF para que realmente os sistemas que são desenvolvidos sejam adequados às necessidades de quem os vai utilizar no dia a dia. É preciso que as bases de dados falem umas com as outras, que sejam construídas com base em linguagens programáticas que façam uma transferência automática de dados, por exemplo, para que realmente quem trabalha em áreas como a farmacovigilância ou na regulamentação, não tenha que inserir as mesmas bases de dados, mas sim ter tecnologias que são desenvolvidas para serem colocadas ao serviço do humano.
Andamos todos a “brincar” com o ChatGPT. Mas o facto é que a IA já está a mudar o mundo. Qual vai ser o lugar reservado para os humanos?
Os humanos nunca vão ser substituídos pela tecnologia. A tecnologia não tem a componente interpessoal e emocional que o Homem tem. O que a tecnologia vai fazer é ajudar-nos a tomar melhores decisões, baseadas no maior número de dados, eliminando assim os vieses que às vezes temos na nossa tomada de decisões. Ao termos dados de machine learning, conseguimos ter acesso à informação de forma mais rápida, conseguimos perceber exatamente, quando falamos por exemplo de gestão farmacêutica, que tipo de doenças é que certas populações poderão estar mais predispostas a ter, baseados nos dados genéticos que carregamos. Assim, é mais fácil perceber que tipo de medicamentos devo desenvolver numa determinada área, para uma determinada doença. É também mais fácil desenvolver novas moléculas, uma vez que conseguimos prever qual é que será a interação ótima entre as moléculas, aquando do desenvolvimento de medicamentos, diminuindo a tentativa e erro que o humano tem inerente a si. Nesse sentido, aumentamos muito a produtividade da indústria, a gestão de recursos humanos e recursos financeiros, tomando melhores decisões. Como tal, o humano nunca poderá ser substituído pela tecnologia.
De que forma é que o machine learning e a IA vão impactar na maneira de fazer negócio da IF?
Vão dar-nos mais informação sobre as vendas, sobre a gestão de stocks, enfim, a gestão do negócio. Vamos ter mais informação sobre a resposta do consumidor a determinada marca, a determinado medicamento e com toda essa informação podemos tomar melhores decisões no mercado. Como fazer um melhor posicionamento estratégico de determinado medicamento, como chegar a novos segmentos da população, como tornarmos também a IF num líder de educação e gestão da Saúde de uma forma preditiva e positiva, não só dando resposta à doença, mas prevenindo-a. Portanto, existem grandes oportunidades para a IF se reposicionar no mercado da saúde e bem-estar.
Voltando ao referido ChatGPT, este tipo de ferramentas pode influenciar a uma grande escala o marketing farmacêutico. Por exemplo, na escrita de textos, no copy de campanhas de saúde pública ou campanhas comerciais para a população. Porquê? Porque nós inserimos alguma informação do tipo de conteúdo que queremos, do tipo de campanhas que pretendemos e, a partir daí, conseguimos ajudar os criativos da IF a fazer campanhas de intervenção junto das populações de forma muito mais rápida. Isso permite também que possa ser utilizado nas mais diferentes formas de comunicação, mas pode funcionar também para entrevistas, para publicações para redes sociais, para que haja uma maior dinamização e reconhecimento da marca farmacêutica ou do laboratório. E, como tal, é uma ótima ferramenta, especialmente para os marketeers na área da saúde. Contudo, tem um senão ainda, relacionado com as limitações da tecnologia, porque, muitas vezes, os factos ainda não são completamente corretos. O texto é coerente, realmente muito impressionante, um texto magnífico, baseado nos dados que nós inserimos no modelo e pode acelerar a grande escala o marketing farmacêutico, mas é preciso ainda que haja a tal intervenção humana e uma confirmação dupla se a informação dada pelo modelo é credível ou não, pois muitas vezes os números ainda estão um bocadinho errados.
Neste contexto, qual vai ser o papel das agências de comunicação quando os factos baterem todos certos?
As agências de comunicação terão que se reinventar. O humano terá que se deixar de focar tanto no copy e no conteúdo criativo, mas mais na parte estratégica de que tipo de plataformas vou utilizar para chegar ao meu público-alvo? Qual é o formato de conteúdo que devo produzir? É um vídeo, um blogue, uma entrevista, é um formato mais curto para o Twitter? Portanto, toda a parte estratégica, como fazer e o que fazer, nunca será substituída pela tecnologia. O que a tecnologia nos vem dar é mais informação, mais conteúdo, mas é o humano que vai decidir como utilizar esse conteúdo. Se calhar vamos ter menos copy, vamos ter menos pessoas a trabalhar na elaboração dos conteúdos e mais pessoas na revisão. E depois, teremos mais pessoas a trabalhar na parte estratégica das redes sociais, por exemplo.
Como é que acha que o machine learning e a IA vão afetar a relação entre IF e profissionais de saúde?
Eu acho que a transformação digital, talvez ainda mais do que o machine learning e a IA, a forma como nós nos comunicamos e como as empresas se tornam mais ágeis e mudam o seu mindset ao nível das ferramentas informáticas que utilizam, é que terá um grande impacto na forma como a IF se relaciona com os profissionais de saúde: mais flexibilidade, mais plataformas online que permitam a um profissional de saúde entrar em contacto com a IF mais facilmente, resolvendo os seus problemas mais rapidamente. É fundamental uma aproximação da indústria ao profissional de saúde, no sentido de que eu, enquanto profissional de saúde, se tiver um problema e o quiser resolver no site do laboratório, tenho que ter acesso à informação toda: como entrar em contacto com o laboratório, quais as melhores formas de resolver o meu problema, quero informação sobre o produto, quero informação sobre farmacovigilância. Quais são os canais de comunicação que os laboratórios vão colocar à disposição dos utentes e dos profissionais de saúde: são call center, são ferramentas de chat, entre outros? Então, a indústria vai ter que repensar a forma como quer ajudar os profissionais de saúde a resolver os seus problemas no dia a dia. Como é que as pessoas podem escolher ou os profissionais de saúde vão escolher determinado fármaco ou determinado genérico? Qual é o posicionamento da marca? Qual é o nível de confiança na marca? O laboratório tem de agilizar o processo e diminuir a burocracia. Algumas regras são inerentes a esta indústria e não podem ser contornadas, mas pode-se trabalhar de uma forma simples e integrada, em colaboração com as equipas internacionais. Depois, os laboratórios devem estar abertos a novas parcerias, porque a IF está muito focada nos profissionais de saúde e nas populações. Hoje em dia, se querem ser uma indústria realmente de ponta e mais diferenciada, tem que fazer novas parcerias com as empresas de tecnologia, com empresas de informática, com empresas de engenharia, simplesmente para que as soluções que vão escolher sejam as mais adequadas ao tamanho, à escala e ao tipo de equipas que existem dentro da própria empresa.
No passado, víamos uma realidade em que cada empresa escolhia várias ferramentas, que eram as melhores no mercado, mas depois nenhuma dessas ferramentas conseguia comunicar com as outras. Simplesmente porque as ferramentas não são desenvolvidas pensando nos problemas aos quais a empresa quer dar resposta, então é aí que está o grande desafio: é mudar a mentalidade. Antecipar em vez de reagir.
Acha que a tecnologia, incluindo a IA e o machine learning, pode levar a IF de uma indústria de ponta e investigação a um produtor de um mero commodity?
Não creio que isso aconteça, simplesmente porque os dados em saúde são dados muito ricos, mas também são dados que estão associados a uma pessoa, a um indivíduo, e que são confidenciais. E como tal, tem que haver privacidade e segurança na forma como estes dados são tratados. Daí que a indústria farmacêutica não poderá ser uma simples commodity. Temos que encarar estes dados como dados que possam ser utilizados sem nunca poder identificar o paciente ou a pessoa que é detentora dos dados. E é aí que reside um dos principais obstáculos à evolução da análise de dados na área da saúde, porque é uma indústria diferente. Apesar ter muitos dados, não poderemos olhar para eles como se tratassem de dados de vendas de produtos, porque estamos olhar para dados de pessoas, para dados de doenças. E, como tal, os mesmos são protegidos e não conseguimos chegar a esse nível de commodity.
Pessoalmente, qual é que acha que vai ser o próximo grande breakthrough da sua área?
Estou convicta que será ao nível de tecnologias que nos vão dar uma resposta mais fiável. Quando há pouco falávamos de tecnologias em que se fazem perguntas aos modelos de machine learning, mas onde ainda há falhas na veracidade da informação que é dada ou que ainda há algumas falhas na classificação de categorias ou na classificação de imagens, acredito que o grande breakthrough estará ao nível dos large language models de machine learning e a forma como vão afetar toda a veracidade da informação que é disponibilizada ao humano. A forma como nós vamos ter acesso a informação já digerida e fácil de usar, em vez de um humano ter que fazer toda a pesquisa e toda a análise por si. Um dos perigos que eu vejo é que os humanos deixem de ter um pensamento crítico e se tornem muito dependentes da tecnologia. E é por isso que eu falo sempre que a estratégia e o planeamento tem que ser ao nível do humano e tentarmos sempre ensinar as novas gerações a fazer análise de dados, a fazer a tomada de decisões baseada em dados. Mais importante do que memorizar a informação, é preciso saber analisá-la e transformá-la em decisões práticas que tenham consequências no dia a dia. É urgente que a Academia comece a ensinar isto.
Vamos deixar de precisar de aprender. Só vamos precisar de saber o que fazer com o conhecimento. É isso?
Exatamente.
É um desafio assustador…
É um desafio, porque os nossos modelos de educação ainda estão muito baseados na memorização de informação e é assim que nós somos avaliados. Vamos ter cada vez mais que aprender com a tecnologia a tomar decisões práticas.
Queria fazer outra ressalva. Um desafio muito grande para a indústria farmacêutica está ao nível das imagens. Anteriormente, a maioria das imagens médicas em dermatologia eram de peles brancas. E o que a tecnologia nos está a fazer hoje em dia é demonstrar alguns dos vieses que tínhamos na educação de profissionais de saúde nesse campo. Acho que é uma área fortíssima para a indústria farmacêutica apostar: fazer com que a educação médica e farmacêutica seja mais diversa ao nível das populações que são estudados é algo que não é feito ainda nas universidades e vai demorar a chegar aos livros dos estudantes e, como tal, é uma formação extremamente importante e uma área de grande oportunidade para a indústria.
Como é que daí, de longe, olha para a pátria e para a maneira como se fazem negócios em Portugal e para o setor da saúde de uma forma geral?
Eu sinto que a gestão empresarial é ainda bastante tradicional, no sentido em que existem poucas ferramentas que deem flexibilidade aos colaboradores para trabalharem a partir de várias localizações geográficas, por exemplo. E também sinto que a estratégia empresarial não está focada, muitas vezes, tanto nos resultados, ou a produtividade dos colaboradores não está assente em resultados, mas sim no número de horas em que o trabalhador tem de trabalhar, no número de horas que passa no escritório. E sinto que esta mentalidade é contrária à produtividade e à felicidade. Os gestores de topo têm muito que trabalhar no sentido de motivar os colaboradores, encontrarem os incentivos certos, não só monetários. E, depois, realmente desenhar as estruturas de avaliação da performance dos colaboradores para que as mesmas reconheçam trabalho bom, ajudem a melhorar trabalho menos bom e não sejam estruturas penalizadoras. Têm de ser estruturas que façam o empoderamento do colaborador, que o deixe experimentar, correr riscos, implementar ideias novas. Se não funcionarem, foi uma aprendizagem para toda a empresa. E toda a empresa tem que aprender com esse “erro”, porque é uma lição valiosa. Acho que são os pontos que eu ainda vejo que temos muito a crescer em Portugal, incluindo na IF. Encontrar menos oportunidades para culpabilizar departamentos e encontrar mais oportunidades para a aprendizagem, para crescermos juntos, porque no fim do dia a empresa é um todo. A empresa tem uma imagem e um posicionamento no mercado e todos os colaboradores e todos os gestores são responsáveis por ele. Não deve haver essa distinção entre o gestor, o líder, e o colaborador. Essa distinção e essa distância ao poder que ainda temos em Portugal é um dos fatores que faz com que as empresas não progridam e não avancem em termos de inovação na escala para a qual teriam potencial.
Qual é o próximo desafio que já começa encarar e até onde é que pretende chegar?
Não sei qual vai ser o meu próximo passo. Neste momento, é minha missão ajudar o maior número de empresas a inovar, a crescer e a mudar a forma como tomam decisões e como são geridas. Gosto muito de ajudar as lideranças de topo, os CEO, a mudar mentalidades. E com essa mudança de mentalidade, também se ajuda a mudar processos.
Vou fazer isso durante a algum tempo, certamente. Depois, possivelmente eu própria possa vir a ser uma liderança de topo.
Em Portugal? Ou não encara a possibilidade de regressar?
Seja em Portugal ou no estrangeiro. Claro que tenho um enorme carinho pelo nosso país, mas muitas vezes fico um pouco indignada por ainda não haver a mudança que deveria acontecer, porque o talento português é fantástico e é altamente reconhecido no mundo inteiro. Ou seja, nós temos grandes profissionais, falta-nos ter agora grandes líderes e é esse o grande entrave para a inovação em Portugal. É urgente mudar o paradigma do chefe para o do líder. E eu gostava de continuar a ajudar nesse sentido, trazendo boas práticas aqui de Silicon Valley. Se vou terminar em Portugal ou não, ainda não sei, ainda não será no futuro próximo, mas quem sabe…