Um dos tópicos que mais tem dado que falar no panorama da saúde em Portugal é o dos médicos de família e, em particular, o facto de existir tradicionalmente uma percentagem não negligenciável de indivíduos inscritos em unidades de cuidados de saúde primários sem médico de família atribuído. De acordo com dados oficiais, divulgados pela ACSS, esta percentagem atingiu os 16.6% em 2011.
Constituindo a porta de entrada preferencial dos cidadãos no sistema de saúde, o médico de família tem um papel relevante na articulação de cuidados de saúde com outras instituições, bem como no acompanhamento contínuo do doente. Isto é particularmente importante no caso de doentes crónicos, uma vez que a sua condição requer um acompanhamento regular, de forma a minimizar a ocorrência de crises que exijam cuidados hospitalares.
Em 2012 foi adoptado um conjunto de medidas, na sua maioria essencialmente administrativas, com vista a reduzir a percentagem de indivíduos sem médico de família atribuído. Exemplos incluem o aumento do número de utentes na lista do médico de família (de 1550 para 1900), o alargamento do horário de trabalho dos médicos, o recrutamento de médicos estrangeiros e aposentados, ou da abertura de concursos para novos especialistas.
Embora não tenha sido realizada, até à data, uma análise econométrica do impacto destas medidas, no final de 2016 a percentagem de utentes sem médico de família atribuído era de 7.9%, a mais baixa de sempre.2 No mesmo período, as desigualdades socioeconómicas entre unidades de prestação de cuidados de saúde primários no que toca à proporção de utentes sem médico de família atribuído também registaram uma diminuição.3
Estaremos finalmente prestes a alcançar uma situação em que todos os utentes inscritos em unidades de cuidados de saúde primários têm médico de família atribuído? Ou tal não passa de uma miragem?
A promessa de “um médico de família para cada português” foi feita já em 20124 e, apesar da diminuição significativa da percentagem de utentes sem médico de família atribuído, continua por cumprir. Adicionalmente, novos desafios podem surgir num futuro próximo. Nos parágrafos seguintes destaco dois.
Um dos principais desafios prende-se com a elevada proporção dos médicos de família em atividade que se encontra próxima da idade da reforma. Tal causará saídas de médicos e não é ainda claro que se consiga compensar essas saídas com entradas de novos médicos principalmente porque a formação de novos médicos é um processo que leva vários anos, tornando necessário antecipar atempadamente quais serão as necessidades em termos de número de profissionais, dada a evolução natural da força de trabalho médica.
Outro desafio importante está relacionado com o facto de haver zonas do país onde existe, de forma sistemática, falta de médicos de família. 22% das vagas do último concurso aberto para a colocação de recém-especialistas em medicina geral e familiar não tiveram qualquer interessado.5 A maioria dessas vagas correspondia a unidades localizadas na zona de Lisboa e Vale do Tejo, bem como no Alentejo. A zona do Alentejo, por exemplo, é uma zona de população maioritariamente idosa e com doenças crónicas, de rendimento inferior à média nacional e com mais dificuldades de acesso a prestadores de cuidados de saúde, onde os ganhos de saúde fruto da atribuição de médicos de família podem ser substanciais. Desde 2015, existem incentivos para a fixação de médicos em áreas onde existem carências sistemáticas. O actual pacote de incentivos inclui um acréscimo remuneratório, dias de férias adicionais, dias para formação e um regime preferencial de colocação dos cônjuges, entre outros.6 Contudo, a eficácia destes incentivos tem sido limitada e continuam a verificar-se grandes discrepâncias na concentração de médicos de família entre os grandes centros urbanos e as zonas mais rurais. Importa perceber quais os motivos para a falta de mobilidade dos profissionais de saúde, para desenhar esquemas de incentivos com potencial para serem bem sucedidos. Um estudo do Instituto Politécnico de Bragança sugere que factores relacionados com a distância e afastamento da família, e não factores financeiros, são o principal obstáculo que impede os médicos de se fixarem em zonas do interior do país. Os elevados fluxos migratórios de médicos para o Reino Unido e outros países da Europa e Médio Oriente, por outro lado, sugerem que existem factores que podem compensar a distância e afastamento da família.
Ana Moura
Doutoranda em Economia, Tilburg University
(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)
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Bibliografia
1 Administração Central do Sistema de Saúde, IP. Relatório anual sobre o acesso a cuidados de saúde nos estabelecimentos do SNS e entidades convencionadas 2014. Lisboa: ACSS; 2015.
2 Administração Central do Sistema de Saúde, IP. Relatório anual sobre o acesso a cuidados de saúde nos estabelecimentos do SNS e entidades convencionadas 2016. Lisboa: ACSS; 2017.
3 Ana Moura e Pedro Pita Barros. As Desigualdades Socioeconómicas na Atribuição de Médicos de Família em Portugal estão a Diminuir? Acta Med Port 2018 Dec;31(12):730-737
4 RTP Noticias. Ministro da Saúde promete médico de família para todos os Portugueses. Notícia datada de 11 de Janeiro de 2012. [consultado 2019 jan 18]. Disponível em: http://www.rtp.pt/noticias/saude/ministro-da-saude-promete-medico-de-familia-para-todos-os-portugueses_ v517190.
5 Público. Jovens médicos de família: 22% das vagas ficaram por preencher. Notícia datada de 30 de Agosto de 2018. [consultado 2019 jan 18]. Disponível em: https://www.publico.pt/2018/08/30/sociedade/noticia/ficaram-por-preencher-86-vagas-para-jovens-medicos-de-familia-1842448.
6 Decreto-Lei n.º 15/2017, de 27 de Janeiro.