Estarão os farmacêuticos desligados do “dever técnico-científico” de reportar reações adversas a medicamentos (RAM)? Há quase 30 anos que a classe aumentou a sua relevância no sistema de Saúde com esta possibilidade.
Seja pela maior complexidade da terapêutica, ou pelo envelhecimento que a torna mais desafiante, as reações adversas a medicamentos são uma causa crescente de morbimortalidade e, assim, um assinalável problema de Saúde Pública. No entanto, os farmacêuticos comunitários parecem distantes deste desígnio profissional.
De acordo com um estudo recentemente publicado e desenvolvido por uma equipa de investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde (CINTESIS), com cerca de 200 inquiridos, apenas 42% tem o hábito de notificar casos com regularidade (com 64% destes a referir não ter dificuldade no processo) e mais de 50% admite nunca o ter feito.
Papel fundamental junto da comunidade
Autorizados desde 1995 a reportar reações adversas a medicamentos, os farmacêuticos encontram-se perante um “dever técnico-profissional” inerente ao ato profissional, garante ao Netfarma Carolina Mosca. A presidente do Colégio de Especialidade de Farmácia Comunitária da Ordem dos Farmacêuticos (OF) complementa que a capilaridade das farmácias e a proximidade com a comunidade torna “fundamental” esta monitorização, “tanto mais que estabelecem a ligação com as pessoas antes, durante e após os tratamentos”.
“Recordo-me que, há uns anos, logo a seguir à autorização para reportar RAM, foram realizadas sessões de divulgação e formação em todo o país, no âmbito das Boas Práticas de Farmácia“, recorda Carolina Mosca. Na altura, continua, os farmacêuticos comunitários eram incentivados a notificar potenciais reações adversas identificadas, “o que motivou na altura a que o número de notificações de reações adversas ao medicamento aumentasse consideravelmente nos anos seguintes”.
Por isso mesmo, explica a responsável, “este artigo e outros que têm sido publicados nesta área, assim como dissertações de mestrado e estudos nas Unidades de Farmacovigilância, atestam que o envolvimento dos farmacêuticos comunitários se mantém aquém de desejável”. O “especialista do medicamento”, deve, por isso mesmo, “direcionar a sua intervenção para a prevenção, identificação, notificação e monitorização de RAM”.
“Omissão da prática profissional”
Contactado pelo Netfarma, o farmacêutico comunitário Henrique Santos admite que este artigo realizado por investigadores da FMUP e CINTESIS “explica bem o facto dos farmacêuticos se estarem a afastar de uma prática profissional clínica à medida que o tempo passa”. Apesar de não atribuir um valor considerável e definitivo ao estudo, referindo que seriam necessários mais dados e definições, o farmacêutico comunitário refere que este “é um indicador que demonstra que cada vez há menos farmacêuticos dispensando medicamentos”.
Ao referir que são poucos os colegas que exercem “a prática do seguimento farmacoterapêutico”, Henrique Santos considera que estudos como este “devem ser um alerta para a classe, pelo que se demonstra que há uma omissão da prática profissional por parte dos farmacêuticos”.
“É efetivamente necessário realizar mudanças na prática farmacêutica que conduzam a um papel do farmacêutico mais interventivo e responsável”, conclui, ao apontar o dedo ao facto de não existir uma ligação entre os sistemas informáticos que os farmacêuticos utilizam e as plataformas de gestão de farmacovigilância.
Como combater e reduzir o problema?
Publicado na revista Journal of Community Health, o estudo conta com um conjunto de propostas sugeridas pelos farmacêuticos para melhorar o Sistema Nacional de Farmacovigilância (SNF). Os cerca que 200 inquiridos do distrito do Porto apontaram a simplificação e otimização do processo de notificação, tal como a integração dos formulários de notificação nos sistemas de informação da farmácia comunitária.
Para os leitores do Netfarma, Carolina Mosca apresentou um conjunto de sugestões que podem contribuir para combater a subnotificação. As lacunas de conhecimento sobre como e o que notificar “podem ser preenchidas através de programas de desenvolvimento profissional contínuo e reforçando o conhecimento teórico e prático no Mestrado Integrado de Ciências Farmacêuticas”.
“Aqui está outro papel importante para farmacêuticos comunitários – o de capacitar as pessoas”
Para a presidente do Colégio de Especialidade de Farmácia Comunitária da OF, a sensibilização e consciencialização dos farmacêuticos comunitários para a identificação, notificação e monitorização de reações adversas ao medicamento deve ser uma constante. Assim, as Unidades de Farmacovigilância “devem promover mais iniciativas que incluam ações de formação que incluam farmacêuticos comunitários”.
Desde 2012 que os cidadãos nacionais podem notificar as suas reações adversas ao medicamento ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. “Aqui está outro papel importante para farmacêuticos comunitários – o de capacitar as pessoas para este procedimento”, afirma. Deverão ainda ser considerados Agentes, Responsáveis e Delegados de Farmacovigilância, continua, que impulsionem “uma participação mais ativa dos farmacêuticos comunitários no Sistema Nacional de Farmacovigilância”.
Finalmente, “acesso do farmacêutico comunitário à Plataforma de Dados de Saúde também é determinante para a melhoria da taxa de notificação de reações adversas ao medicamento, como da qualidade do seu conteúdo”. Desta forma, acredita, haveria uma maior proatividade na deteção e satisfação das necessidades de Saúde.
O artigo científico “Motivação e Conhecimento dos Farmacêuticos Comunitários Portugueses para a Notificação de Suspeitas de Reações Adversas a Medicamentos: Um Estudo Transversal”, publicado no Journal of Community Health, foi também publicado na Farmácia Clínica – A Revista da Farmácia Prática.