O acesso ao medicamento e a Economia da Saúde* 1553

É conhecida por todos a polémica que tem suscitado acesas discussões em torno do sector da saúde. Finalmente, ao fim de vários meses de negociações, o Estado português chegou a acordo com a farmacêutica Gilead Sciences para o fornecimento do medicamento inovador para a hepatite C, o Sofosbuvir – nos próximos três anos serão tratados cerca de 12 mil doentes e cada tratamento terá um custo inferior a 25 mil euros, à semelhança do que acontece na nossa vizinha Espanha.

Trata-se de um assunto sensível e que, como tal, merece uma abordagem cuidada e delicada, não cabendo aqui considerações demagógicas, fácil tentação neste tipo de questões.

A hepatite C é uma infecção crónica e que afecta 3% da população mundial, entre cerca de 170 a 200 milhões de pessoas. Em Portugal, o número de infectados é estimado em 100 mil pessoas sendo que ocorrem à volta de mil mortes anuais em consequência desta doença. Estes dados permitem classificar este problema como de Saúde Pública e que, por isso, carece de maior estratégia e planeamento ao nível do tratamento, bem como da prevenção.

Por outro lado, o Sofosbuvir consiste num medicamento com uma eficácia a atingir os 90% e que além de, na maioria dos casos, evitar o recurso a injecções, reduz sobremaneira os pesados efeitos secundários associados ao tratamento dos doentes.

É, indubitavelmente, um medicamento inovador que proporciona um salto evolutivo na indústria e pelo qual o produtor tem o devido mérito. Além disso, a Gilead tem a propriedade da patente do medicamento revolucionário pelo que a mesma tem o direito exclusivo de explorar a invenção e ainda “o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados” (artigo 101º, nº 1 e 2, do Código de Propriedade Industrial).

Não obstante, o preço antes exigido pelo tratamento seria insuportável para qualquer um sistema de saúde. Repare-se, qualquer um e não apenas o nosso Serviço Nacional de Saúde. É que este problema não atingiu apenas Portugal; teve repercussões a nível mundial. E este factor afasta qualquer argumento de custo-efectividade que possa ser invocado.

Porém, uma visão preponderantemente economicista contraria Direitos Fundamentais e constitucionalmente protegidos como o são o Direito à Vida (artigo 24º) e o Direito à Saúde (artigo 64º) – ainda para mais quando se impõe um Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito.

Convém não esquecer que a Economia não constitui fim de si própria. A Economia existe e está ao serviço do Homem e da Sociedade: é um instrumento para ser alcançada a Justiça, cabendo ao órgão político a tarefa mediadora de sensibilizar o tecnicismo económico.

Não se aponta aqui o dedo à actuação do Governo. Apenas se apela a uma maior preparação e um melhor acompanhamento para casos deste cariz. Com ou sem culpa, este foi um processo demasiado moroso e que determinou perdas e custos irremediáveis pelo que o que aqui se pede é que seja o Governo a proceder também com inovação.

O artigo 2º da Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina estabelece o primado do ser humano, afirmando que “O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência”. Ora, prevê o Código da Propriedade Industrial a possibilidade de expropriação de patente por utilidade pública se assim as condições o exigirem (artigo 105º). Ainda que seja preferível uma resolução consensual e pacífica (negociada), poderá acontecer que o tempo não esteja do nosso lado.

Não se pode exigir racionalidade económica a pessoas que se vêem impossibilitadas de aceder a um tratamento capaz de pôr fim à sua doença. Independentemente de esses argumentos serem correctos ou não.

A base de qualquer Estado de Direito é e só pode ser a dignidade da pessoa humana. Este princípio é fundamento e limite máximo de toda a actuação do Homem – assim dita a Constituição da República Portuguesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o bom senso.

*Texto escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico

Amândio Novais

Vieira Advogados