O aumento do juramento 227

Qualquer sistema económico, pelo menos desde Adam Smith, é composto por uma função de trabalho e capital, assim como da produtividade total destes (e outros) fatores de produção. A saúde não é diferente; logo, a frase que ouvimos frequentemente nas nossas notícias – os recursos humanos são um fator chave para qualquer sistema de saúde – é uma consequência lógica.

Se por um lado auxiliam na produção de cuidados de saúde, conseguem, como quaisquer trabalhadores, ser o pequeno grão de areia na engrenagem desta função tão importante do sistema de saúde.

Em Portugal, a dificuldade de atração e retenção de profissionais de saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS) está na ordem do dia. As ordens profissionais justificam este obstáculo com a falta de progressão da carreira e a estagnação remuneratória, sendo este um assunto que antecede, quase por tradição, a elaboração do Orçamento de Estado.

A fuga dos profissionais de saúde do SNS para o privado surge como uma oportunidade para estes procurarem um equilíbrio favorável para o que procuram para as suas vidas. Esta afirmação tem subjacente o pressuposto que vão ganhar mais no setor privado do que no setor público.

Estes casos surgem muitas vezes no caso particular dos médicos, onde ocorre um contexto dual de trabalho. Isto é, estes profissionais alocam o seu tempo entre os dois setores, normalmente em detrimento do setor público, ou acabam por transitar totalmente para o setor privado. No entanto, permanece a dúvida sobre quais as principais motivações para este êxodo e, sobretudo, se se confirma o pressuposto de ganharem mais no privado do que no público.

Numa tentativa de caracterização (aproximada por falta de melhores e mais granulares dados) dos fluxos de remuneração e transição laboral entre os sectores público e privado do serviço nacional de saúde, eu e dois colegas economistas da saúde utilizámos alguns dados dos Quadros de Pessoal (INE) e da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), para os anos entre 2010 e 2019.

Verificámos que o número de médicos a trabalhar no setor privado aumentou 95% entre 2010 e 2019. Este aumento poderá ser justificado tanto por novos contratos, como por substituições dos acordos de trabalho. Por outro lado, a proporção de médicos em regime dual de trabalho (ou seja, a trabalharem para ambos os setores) decresceu de 47% para 25% de todos os médicos a trabalhar no setor privado entre 2010 e 2019. Isto sugere um crescimento da mão-de-obra do setor privado por uma substituição de posições a tempo inteiro por posições que permitam praticar tanto neste como no setor público. Os determinantes para esta escolha dependem de fatores individuais como o género, idade, educação e especialidade médica, assim como de fatores relacionados com a entidade laboral, tais como a concentração de profissionais e respetivos fluxos de entrada e saída.

Relativamente à aproximação para os fluxos de remuneração, verificou-se um decréscimo de 13% no salário médio real dos médicos no setor público (SNS) e de 19% daqueles que estão a tempo inteiro no setor privado para o mesmo período de observação. O intervalo salarial entre estes dois grupos não aumentou; na realidade, o salário do SNS era ligeiramente superior ao do setor privado para profissionais exclusivamente dedicados aos mesmos.

Ora se há uma dificuldade na retenção dos médicos no SNS por falta de progressão da carreira e estagnação remuneratória, se verificamos que há uma migração para posições a tempo inteiro no setor privado e, mesmo assim, os salários não são assim tão diferentes, que motivos existem efetivamente para esta mudança?

Será porque o setor público está mais disposto a negociar mais frequentemente do que o setor privado? Ou porque o setor privado se torna mais apetecível por corresponder a outras variáveis que não conseguimos observar, mas que, porventura, correspondem melhor ao equilíbrio que estes profissionais procuram? Ou, no limite, porque o setor privado permite uma “fuga” dos males percecionados do SNS?

Estas questões são importantes, porque moldam o nosso sistema de saúde e a resposta que este é capaz de dar. E precisamos de entender bem se a fricção necessariamente gerada por estes elementos é justificada e, se sim, pelo quê.

Não tenho uma resposta para as questões aqui colocadas. No entanto, tenho a certeza que quem fica a perder é o sistema de saúde e, consequentemente, toda a sociedade. Perdemos em saúde por diminuição do acesso e oferta de cuidados, em despesa com pagamentos feitos para fora do SNS pelo mesmo ato, entre outras ineficiências e anomalias. Por absurdo, podemos, em alguns casos, chegar à situação caricata de o mesmo médico que não tinha espaço para cumprir a sua função no setor público o poder fazer exatamente com as mesmas condições se apenas fizermos variar o facto de tal não ocorrer durante o seu horário de trabalho, mas como trabalho suplementar.

Estas são, certamente, perguntas que espero que aqueçam um Verão que, até agora, tem sido bastante ameno…

 

Nota: Esta crónica é produzida pela autora enquanto académica afiliada no NHEM-KC, vinculando exclusivamente a própria e não refletindo, necessariamente, as opiniões ou considerações das instituições com que colabora.

 

Joana Gomes da Costa
Value & Access Lead – Novartis Portugal
Professora Auxiliar Convidada – Escola Superior de Enfermagem de Coimbra