(Crónica) O Enigma das Faltas às Consultas: Um Desafio para os Sistemas de Saúde 68

O aumento das faltas às consultas médicas tem-se tornado um problema sério nos sistemas de saúde. Este fenómeno não só leva ao desperdício de recursos valiosos e prejudica a eficiência do atendimento, contribuindo para o aumento do tempo de espera e insatisfação dos pacientes, como também pode gerar consequências graves para a saúde dos próprios indivíduos.

Para o paciente, consultas médicas são fundamentais para monitorizar e cuidar da saúde, sendo consideradas uma forma de autocuidado (Schectman et al., 2008). Pacientes com doenças crónicas, em especial, são fortemente incentivados a seguir as recomendações de consultas regulares para o controle das suas condições. Contudo, mesmo estes pacientes, que necessitam de acompanhamento regular, faltam a consultas sem aviso prévio (Boone et al., 2023).

Nos últimos anos, a gravidade deste problema tem sido amplamente discutida nos meios de comunicação de diversos países, devido aos desafios que impõe nos serviços de saúde pública. No Reino Unido, por exemplo, o SNS de Inglaterra (NHS England) reportou que, em 2019, 7,2 milhões de consultas de cuidados primários foram perdidas, resultando num prejuízo de cerca de 216 milhões de libras (NHS, 2019). Esta tendência manteve-se nos anos seguintes, com 7,8 milhões de consultas perdidas entre 2021 e 2022 (NHS, 2023). Em França, a Académie Nationale de Médecine e o Ordre des Médecins estimam que cerca de 27 milhões de consultas são perdidas anualmente (2023). Em Portugal, uma análise das primeiras consultas referenciadas dos cuidados de saúde primários para os cuidados secundários revelou que, nos últimos cinco anos, cerca de 900 mil consultas foram perdidas, o que representa 15,7% do total de consultas (Campos e Carmo, 2024).

Com o intuito de mitigar esse problema, diversas instituições de saúde têm implementado estratégias para aumentar a adesão dos pacientes às consultas e minimizar o desperdício de recursos. Entre as iniciativas, destacam-se o envio de mensagens, reminders, que tem sido gradualmente implementado em Portugal e Inglaterra; a aplicação de multas por não comparecimento, com implementação prevista em França (Viner, 2024); e o uso de sistemas de overbooking. Embora estas estratégias apresentem resultados positivos, ainda são insuficientes para abranger a diversidade de pacientes que faltam às consultas.

Os sistemas de overbooking, por exemplo, visam melhorar a eficiência dos prestadores de cuidados, mas não aumentam a adesão dos pacientes. Além disso, se todos comparecerem, o serviço ficará sobrecarregado, com várias consultas agendadas para o mesmo horário. A aplicação de multas cria um incentivo financeiro para que os pacientes compareçam ou cancelem a consulta com antecedência, mas pode ter repercussões imprevistas, sobretudo para pacientes em condições económicas vulneráveis.

Já a estratégia de envio de mensagens para relembrar consultas tem sido eficaz na redução das faltas, inclusive em Portugal. No entanto, esta abordagem parece alcançar apenas os pacientes cuja ausência seria causada por esquecimento. Como as mensagens não eliminam o problema por completo, surge a questão: que outros fatores, além do esquecimento, contribuem para o não comparecimento ou a falta de cancelamento da consulta?

É importante investigar os motivos pelos quais estas estratégias não solucionam integralmente o problema. Ao eliminar o risco de esquecimento, os lembretes deveriam permitir ao paciente tomar uma decisão simples: se ainda precisa da consulta, comparece; se não, desmarca. No entanto, muitos continuam a faltar sem aviso prévio, o que indica a presença de outros fatores, como a procrastinação, a perceção de custos e benefícios, ou barreiras psicológicas, que influenciam essa decisão.

No últimos anos, foram realizados diversos estudos em múltiplos países e contextos que visam determinar quais as características comuns de pacientes que faltam a consultas. No entanto, estes não são suficientes para estabelecer um mecanismo comportamental que sustente a decisão do consumidor (Parsons et al. 2021).

Por exemplo, os resultados geralmente sugerem que as faltas às consultas são mais frequentes quanto maior o tempo entre o agendamento e a consulta (Guay et al., 2014; Junod Perron et al., 2013), sugerindo que limitações cognitivas, como a dificuldade de memorizar compromissos, influenciam a decisão. Além disso, o tempo de espera pode levar os pacientes a procurar alternativas ou simplesmente a negligenciar a consulta.

Outra possibilidade pouco destacada nestes estudos é a relação entre saúde e procrastinação. Investimentos em saúde frequentemente envolvem custos imediatos — como tempo e esforço —, enquanto os benefícios são apenas evidentes a longo prazo. Esta circunstância pode levar os pacientes a procrastinar e, eventualmente, faltar às consultas (Altmann e Traxler, 2014; O’Donoghue e Rabin, 2001).

É evidente que a tomada de decisões no âmbito da saúde envolve um processo complexo, influenciado por diversos fatores cognitivos, comportamentais e sociais. Assim, torna-se necessário aprofundar a investigação nesta área para compreender melhor os mecanismos que levam os pacientes a faltar às consultas, mesmo quando estratégias como reminders estão em vigor. A literatura existente oferece uma caracterização detalhada destes pacientes, mas ainda não é suficiente para explicar completamente o fenómeno.

Investir neste ramo de investigação, sobretudo ao incorporar elementos de economia comportamental, pode proporcionar insights valiosos sobre as barreiras psicológicas e motivacionais que interferem no processo de decisão dos pacientes. Este conhecimento é fundamental para o desenvolvimento e adaptação de políticas e estratégias de mitigação, garantindo que sejam mais eficazes na redução das faltas.

 

Mariana Videira

PhD Candidate in Health Economics 
Professora assistente na Nova SBE 

 

Referências

Académie nationale de médecine and the Ordre des médecins. Rendez-vous médicaux non honorés, 2023. URL https://www.conseil-national.medecin.fr/publications/communiques-presse/rendez-medicaux-honores. Accessed: 25 September 2024.

Alexandra Campos and Daniela Carmo. Quase 900 mil consultas desperdic¸adas no sns por faltas dos doentes nos últimos cinco anos, 2024. URL https://www.publico.pt/2024/05/13/sociedade/noticia/quase-900-mil-consultas-desperdicadas-sns-faltas-doentes-ultimos-cinco-anos-2090018. Accessed: 25 September 2024.

Altmann, S., & Traxler, C. (2014). Nudges at the dentist. European Economic Review, 72, 19-38.

Boone, C. E., Celhay, P. A., Gertler, P., & Gracner, T. (2023). Encouraging Preventative Care to Manage Chronic Disease at Scale (No. w31643). National Bureau of Economic Research.

Guay, M. O. D., Tanzi, S., Arregui, M. T. S. M., Chisholm, G., de la Cruz, M., & Bruera, E. (2014). Characteristics and outcomes of advanced cancer patients who miss outpatient supportive care consult appointments. Supportive Care in Cancer, 22, 2869-2874.

Junod Perron, N., Dao, M. D., Righini, N. C., Humair, J. P., Broers, B., Narring, F., … & Gaspoz, J. M. (2013). Text-messaging versus telephone reminders to reduce missed appointments in an academic primary care clinic: a randomized controlled trial. BMC health services research, 13, 1-7.

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O’donoghue, T., & Rabin, M. (2001). Choice and procrastination. The Quarterly Journal of Economics, 116(1), 121-160.

Parsons, J., Bryce, C., & Atherton, H. (2021). Which patients miss appointments with general practice and the reasons why: a systematic review. British Journal of General Practice, 71(707), e406-e412.

Schectman, J. M., Schorling, J. B., & Voss, J. D. (2008). Appointment adherence and disparities in outcomes among patients with diabetes. Journal of general internal medicine, 23, 1685-1687.