Observatório acusa Ministério de «silenciar» efeitos «evidentes» na crise 607

Observatório acusa Ministério de «silenciar» efeitos «evidentes» da crise

30 de junho de 2014


O Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) acusa o Ministério de estar em «silêncio» e «negação» face aos «evidentes» efeitos negativos da crise na saúde, criticando a ausência de estudos que os monitorizem e de medidas que os minimizem.

Perante este «estado de negação», o OPSS escolheu este ano o título “Saúde – Síndroma de negação” para o Relatório de Primavera 2014, que será hoje apresentado em Lisboa.

A crítica do OPSS é extensível às autoridades europeias com responsabilidades nesta área, que acusam de se manter em «silêncio total», não obstante serem responsáveis por muitas das decisões que têm sido tomadas relativas à saúde.

O Observatório considera evidente que há um conjunto de dados que indiciam um impacto negativo da crise sobre a saúde das pessoas e lembra ter já chamado a atenção para este aspeto em anos anteriores.

«O OPSS tem vindo a chamar a atenção, através dos últimos cinco Relatórios de Primavera, para a crise e para os seus impactos na área da saúde – mas mantém-se a ausência de um diagnóstico oficial rigoroso sobre o tema, a partir do qual se possam organizar respostas apropriadas».

No relatório, o OPSS relembra que os efeitos negativos da crise sobre a saúde seriam evitáveis se se investisse nesta área, o que não só serviria para «proteger as pessoas da crise», como poderia ter «um papel importante na recuperação económica».

«Apesar disso, não se vislumbram sinais indiciadores de uma política intersectorial de saúde que tenha como objetivo monitorizar indicadores de impacte e acautelar ou minimizar os previsíveis efeitos da crise, nomeadamente nos grupos mais vulneráveis», critica, citado pela “Lusa”.

Em vez disso, «parece ser evidente um manifesto esforço» da UE e do Governo português de «negar» essa evidência, evitando a discussão e a adoção de medidas de prevenção ou de combate.

De facto, há mais de um ano – um dia após a divulgação do Relatório de Primavera 2013 – o ministro da Saúde comprometeu-se a fazer um estudo alargado sobre os efeitos da crise económica e financeira na saúde dos portugueses, o que nunca aconteceu.

Já esta semana, Paulo Macedo anunciou que a Organização Mundial de Saúde vai avaliar os efeitos da crise na saúde em Portugal.

Para o observatório, verifica-se uma «interrupção» e, até mesmo, uma «regressão» nas medidas de descentralização – a «matriz genética do SNS ao longo dos seus mais de 30 anos».

«Nos últimos anos, tem-se verificado um conjunto de ações e medidas de política que evidenciam uma interrupção, se não uma regressão, no processo de descentralização no sistema de saúde público», afirma, acusando o Governo de, simultaneamente, desenvolver um «processo de desconcentração» através da devolução de alguns hospitais às Misericórdias.

Segundo o OPSS, as diversas medidas de centralização adotadas, como a lei dos compromissos, a burocratização dos processos de aquisição e contratação, ou o controlo central dos investimentos e da informação, desmotivam e desresponsabilizam as lideranças das organizações de saúde.

A curto prazo estas barreiras burocráticas e a incerteza quanto aos recursos disponíveis, impedem o planeamento estratégico, a contratualização plurianual e a sustentabilidade das organizações, considera.

O relatório vai mais longe e afirma que as estruturas regionais e locais estão transformadas em «simples correias de transmissão de decisões centralmente tomadas», o que retira eficácia, massa crítica, experiência e capacidade de inovação, para encontrar soluções.

«Através do centralismo silencia-se um conjunto diversificado de players e por essa via esta opção representa hoje um elevado fator de risco no desempenho futuro do SNS», acrescenta.

O grande problema disto é que «do outro lado estão pessoas em sofrimento e com um desenvolvimento cada vez mais hipotecado».

Cuidados primários continuam sem ser prioridade

O OPSS lamenta que os Cuidados de Saúde Primários continuem a não ser prioridade, apesar de terem um papel determinante em momentos de crise e de o Governo afirmar sistematicamente que são uma área a privilegiar.

No Relatório de Primavera 2014, o OPSS aponta o dedo aos cuidados de saúde primários (CSP) como um dos casos mais evidentes do «estado de negação» e de «silêncio» do Governo face aos efeitos da crise e à falta de investimento na saúde.

Lembrando que este é um dos temas que «vêm sendo apontados como problemáticos» há mais de dez anos, o OPSS considera que o ministério não lhe tem dado a devida prioridade.

O relatório refere que os CSP são «sistematicamente referidos no discurso político como a área a privilegiar», para além do «papel determinante» que podem assumir em momentos de crise, como o atual.

«No entanto, a prática política sugere-nos que os CSP não se têm constituído como prioridade», acusa o observatório, frisando que apesar de «algumas evoluções positivas», persistem problemas que dificultam a prestação de cuidados de saúde ao utente.

Como aspetos positivos, o relatório destaca a criação e aprovação do perfil profissional do enfermeiro de família, a abertura de vagas para o internato de medicina geral e familiar e a abertura de algumas Unidades de Saúde Familiar (USF) novas.

No entanto, prevalecem dificuldades no dia-a-dia dos profissionais que «dificultam muito» a prestação de cuidados, como um sistema de informação deficiente, a falta de recursos humanos e a fragilidade de algumas unidades funcionais, sublinha.

O observatório questiona também a falta de investimento nas USF (Unidades de Saúde Familiares), quando se sabe que constituem uma mais-valia e que estão previstas no memorando de entendimento.

O relatório salienta a «evidente» poupança e mais-valias das USF, considerando «inexplicável que não se incremente a criação de mais USF e a passagem de USF modelo A a modelo B».

O modelo A inclui as USF do setor público administrativo com regras e remunerações definidas pela Administração Pública, aplicáveis ao sector e às respetivas carreiras dos profissionais que as integram, enquanto o modelo B abrange as do setor público administrativo com um regime retributivo especial para todos os profissionais, integrando remuneração base, suplementos e compensações pelo desempenho.

«Sendo os CSP essenciais num cenário de crise e sendo as USF consideradas, nacional e internacionalmente, uma boa aposta, porquê este impasse? O próprio MdE [memorando de entendimento] negociado com a Troika recomendava o seu incremento», sublinha o observatório.

Na análise deste ano, o OPSS chama a atenção para a necessidade de intensificar o ritmo de reorganização, desenvolvendo as várias unidades funcionais, dos CSP.

Aperfeiçoar os indicadores e o modelo de avaliação do desempenho, atribuir autonomia de gestão e responsabilização aos agrupamentos de centros de saúde, desenvolver os sistemas de informação, instituir uma política previsional de recursos humanos e avançar com as experiências do enfermeiro de família, são algumas das principais recomendações do observatório este ano, no âmbito dos CSP.

O OPSS chama ainda a atenção para a necessidade de se avaliarem os resultados das Unidades Locais de Saúde (ULS), revelando ter iniciado com o presente relatório «uma linha de investigação relacionada com as ULS».

Observatório considera resposta na saúde mental ainda insuficiente

O OPSS considera que a resposta dos serviços na área da saúde mental é ainda insuficiente e propõe melhorias na articulação com os cuidados de saúde primários e um sistema menos burocrático.

De acordo com o Relatório de Primavera 2014, Portugal está perante uma conjugação de fatores desfavoráveis na área da saúde mental, agravada pela resposta insuficiente e sustentada por um sistema de informação «aparentemente medíocre».

Sublinhando que o Plano Nacional de Saúde Mental (2007-2016) definia um conjunto de áreas prioritárias e ações a desenvolver, o relatório sustenta: «Apesar disso (…), continua a haver um número importante de necessidades não satisfeitas ao nível da organização de serviços, prestação de cuidados e investigação epidemiológica».

Citando dados do INFARMED e do INE (Instituto Nacional de Estatística), o OPSS chama a atenção para o aumento do consumo de antidepressivos, dos casos de desemprego, da emigração e das famílias a viverem no limiar da pobreza.

«Estamos, assim, perante um cenário de elevada prevalência base de doença mental, num contexto em que os determinantes sociais de saúde são extremamente desfavoráveis, sendo que normalmente coexistem nas mesmas pessoas potenciando sinergicamente o seu efeito», considera.

Ainda sobre o consumo de ansiolíticos e hipnóticos, o OPSS salienta que as recentes alterações legislativas sobre a prescrição deste grupo de medicamentos (abolição do uso das prescrições triplas) «poderão condicionar o seu padrão de consumo», pelo que importa caracterizar e estudar o seu impacto na saúde.

Em relação ao controlo da diabetes, o observatório assinala como positiva a evolução dos indicadores relativos aos resultados ao nível dos registos nos cuidados primários, mas lembra o aumento dos reinternamentos por descompensação/complicações da diabetes e o aumento das amputações dos membros inferiores, contrariando a tendência de redução que se vinha a verificar.

As doenças infeciosas são também consideradas das mais sensíveis aos determinantes da saúde afetados pela crise. Assim, como aspetos positivos, o observatório aponta a diminuição do número de casos de infeção e da taxa de mortalidade por VIH/sida e o decréscimo da taxa de infeção em utilizadores de drogas injetáveis.

Todavia, contrapõe com «um aumento da taxa de prevalência de infeção por VIH/sida em populações mais vulneráveis» e «um decréscimo muito acentuado do número de testes rápidos realizados nos CAD».

Chama ainda a atenção para a «redução acentuada (cerca de 60%) no número de seringas distribuídas entre 2009 e 2012, ao abrigo do programa ‘Diz não a uma seringa em 2ª mão’», e para a «redução acentuada (70%) na distribuição gratuita de preservativos masculinos».

Quanto aos estilos de vida, reconhecem a existência de diversos programas de intervenção – como o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável e o Regime de Fruta Escolar -, «alinhados com as recomendações internacionais», mas «dotados de escassos recursos humanos e materiais».

«O facto de os dados indicarem que o consumo alimentar da população portuguesa sofreu alterações com a crise, que se vive no país, pode ter sido esta uma das principais responsáveis por essas alterações», consideram os especialistas do OPSS, sublinhando: «o decréscimo do consumo de proteína de origem animal pode não ser um indicador que segue as lógicas do saudável, mas as lógicas socioeconómicas, ou seja, consomem menos proteína animal, aqueles que não a conseguem comprar».