O sangue é um dos elementos essenciais na prestação de cuidados de saúde. Por exemplo, em contexto hospitalar, é necessário haver sangue disponível para qualquer cirurgia ou acidentes. Os doentes com cancro necessitam frequentemente de transfusões sanguíneas para os seus tratamentos. Em situações de crise, como um ataque terrorista ou um terramoto, uma das primeiras reações da população é doar sangue para tratar dos feridos. Sendo um produto do corpo humano, é frequentemente considerado um produto “sem preço”, por ter um valor incalculável. Alvin Roth (2007) define este tipo de produtos como bens repugnantes, isto é, bens sobre os quais a opinião pública tem uma reação negativa à ideia de fixar um preço. Nos mercados tradicionais, o equilíbrio de mercado é determinado pela quantidade na qual a procura e a oferta coincidem. O preço de equilíbrio é o preço para o qual a quantidade da oferta e da procura coincidem. Este preço desempenha o papel de mecanismo de coordenação entre a procura e a oferta, e permite evitar desequilíbrios. Um exemplo muito claro é a subida de preço do Uber (surge pricing) quando há um excesso de procura, com o objetivo de aumentar o número de motoristas disponíveis no mercado. Ora, no caso do sangue, assim como no caso do transplante de órgãos, isto não acontece. Efetivamente, o facto de não haver um preço para o sangue cria um grave problema de coordenação. A oferta de sangue, constituída exclusivamente por dadores benévolos de sangue, em Portugal, tem dificuldade em responder atempadamente às necessidades da procura, o que leva a desequilíbrios e mesmo a ruturas de stock. Os desafios são grandes – é importante realçar que o sangue é um bem que tem uma vida útil relativamente curta, de 45 dias, e que os dadores podem doar apenas de 3 em 3 (homens) ou 4 em 4 meses (mulheres). Coordenar a recolha de sangue é uma tarefa a cargo do Instituto Português do Sangue e Transplantação, que é também responsável pela garantia da qualidade e segurança de dadores e doentes. Os sistemas de saúde têm recorrido a diferentes incentivos para resolver estes problemas de coordenação. Slonim et al (2014) recolhem um conjunto de evidências científicas sobre o efeito de dar pequenos benefícios, na sua grande maioria não monetários, a dadores de sangue. Estes pequenos benefícios, como t-shirts, canetas, testes de colesterol (na Suíça), coupons (nos Estados Unidos), em geral contribuem para um aumento do número de dadores de sangue. Contudo, estes estudos centram-se em situações pontuais em que foram introduzidos estes benefícios por um tempo muito limitado. Não há, por isso, evidência científica que apoie a utilização destes incentivos para contribuir para o equilíbrio de mercado. Estão por isso a ser desenvolvidas alternativas que permitam aproximar o mercado de uma situação de equilíbrio. Na Dinamarca, e mais recentemente na Austrália, existe um registo de dadores de sangue, que estão disponíveis para ser chamados a dar sangue quando for necessário. É um sistema desenhado com base na ideia dos registos de dadores de medula óssea, por exemplo, em que o dador se disponibiliza a contribuir quando chamado a tal. Em Portugal, os dadores de sangue que o fizessem com regularidade disfrutaram durante anos da isenção de taxas moderadoras. Nos últimos anos, este benefício foi restringido a situações de cuidados de saúde primários, mas esta política foi alterada para a situação anterior de isenção total de taxas moderadoras. O objetivo das recolhas de sangue é obviamente o equilíbrio da procura e oferta de sangue, para satisfazer as necessidades dos doentes. Ora, a sequência de alterações dos incentivos tem um efeito sobre a oferta de sangue que tem de ser medido, tanto no curto como no longo prazo. Dada a evidência científica disponível, fica também a questão de saber se esta é a melhor forma de atingir o equilíbrio de mercado, ou se seria preferível desenvolver um sistema de registo de dadores, com menores custos de coordenação. Bibliografia: Roth, A. E. (2007). Repugnance as a constraint on markets. Journal of Economic Per- spectives, 21(3):37–58. Sara Machado (A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores). |