Portugal Desigual 941

Em Portugal no ano de 2014, mais de 25% dos rendimentos foram para os 10% mais ricos. Em contrapartida, o primeiro decil (os 10% mais pobres) recebia apenas 2,4%. Isto faz de Portugal um dos países mais desiguais da União Europeia. As desigualdades sociais – das quais a de rendimentos é apenas uma parte – são um tema em voga. O livro de Thomas Picketty, “O capital no século XXI” (Círculo de Leitores, 2014) é simultaneamente um reflexo e catalisador desta “moda”. Neste livro, o autor sugere que, sem a intervenção do estado, o atual sistema dos países desenvolvidos estimula a concentração de riqueza.

Mas a desigualdade social é, até certo ponto, uma realidade inevitável – não há sociedade sem algum tipo de hierarquização e nem todas as hierarquias são injustas. Aliás, algumas desigualdades são necessárias: não choca a ideia de que quem trabalha mais deve ser mais bem pago. A questão que se levanta é onde traçar essa linha: quando é que podemos considerar o desigual injusto?

A saúde ajuda a esta reflexão. Em 1980, sir Douglas Black, médico e investigador escocês, produziu um relatório (o “Black Report”, uma feliz coincidência entre o nome do autor e o tom das notícias que trazia) que descrevia as desigualdades em saúde da população Britânica e como estas haviam aumentado nas últimas décadas, mesmo depois do estabelecimento do serviço nacional de saúde. O relatório mostrava que os homens da classe social mais baixa tinham uma taxa de mortalidade duas vezes mais elevada que os da classe mais alta. Este relatório, encomendado pelo partido trabalhista, só ficou pronto para publicação depois das eleições de 1979, que levaram Margaret Thatcher ao poder. O novo governo conservador adiou a apresentação pública do relatório para um feriado nacional em agosto de 1980, publicando apenas 260 cópias em papel. Mas a atenção mediática foi significativa, e iniciava-se assim uma era de preocupação com desigualdades sociais.

A saúde oferecia, assim, um reflexo das desigualdades económicas, mas mais difícil de aceitar. Aceitamos que existam pessoas mais ricas que outras, mas não é tão fácil aceitar que essas pessoas vivam mais tempo e em melhor saúde. Mas esta relação é ubíqua, vista em todas as sociedades do mundo, dentro de todos os países e entre países. Em Portugal morrem menos de três crianças no primeiro ano de vida por cada 1.000 que nascem; em Angola morrem mais de 150. Existe entre os países do mundo uma relação praticamente linear entre a taxa de mortalidade infantil e o PIB per capita.

Mas mesmo em cada país, desde o mais pobre ao mais rico, observa-se um gradiente na saúde que está intimamente ligado ao gradiente social. Os mais pobres são sistematicamente menos saudáveis, para uma variedade de doenças. Análises empíricas mostram que esta relação pode ser parcialmente explicada por uma variedade de factores – como stress e falta de controlo sobre o dia a dia, comportamentos menos saudáveis, menor acessibilidade aos cuidados de saúde ou ambiente físico desfavorável. Mas mesmo tendo em conta todos estes factores, a relação entre riqueza e saúde continua a ser um puzzle com peças em falta.

Em Portugal, as desigualdades na saúde refletem as desigualdades na riqueza: entre 22 países europeus, as maiores diferenças na saúde entre pessoas com mais e menos educação são vistas em Portugal (Mackenbach et al, 2008). Recentemente, a Organização Mundial da Saúde publicou um relatório onde se salienta que são exatamente as condições de vida e a distribuição desigual de poder, dinheiro e recursos que determinam as desigualdades em saúde. Portugal não é exceção. Talvez seja altura de termos o nosso “Black Report”.

Referências:
Peter Townsend et al. Inequalities in Health: Black Report. Pelican, 1982.
Thomas Piketty, “O Capital no Século XXI”, Circulo de Leitores, 2014.
Mackenbach JP et al. “Socioeconomic inequalities in health in 22 European countries.” New England Journal of Medicine 358.23 (2008): 2468-2481.

Inês Campos Matos,

(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores)