O edifício histórico que alberga a sede da Associação Nacional das Farmácias (ANF) e o Museu da Farmácia foi, pelo segundo ano consecutivo, o palco escolhido para albergar a Medical Cannabis Europe Conference. Nesta 3.ª edição, nos dias 28 e 29 de setembro, mais de 30 oradores debateram o uso da canábis para fins medicinais em Portugal e na Europa, com uma visão global perante uma área onde a legislação é um desafio constante, embora moroso.
“Portugal está a tornar-se num dos principais hubs de cultivo de canábis na Europa”. A frase foi proferida por Hermano Rodrigues, diretor da consultora EY-Parthenon, durante a conferência inaugural do dia: “What’s New: Cannabis Market in Europe and Portugal – past, presente and future”. Segundo o especialista, o país apresenta um conjunto de cinco características que o tornam numa escolha de negócio competitiva a ter em atenção pelos stakeholders.
Com uma “posição geoestratégica, níveis de segurança elevados e boas infraestruturas”, Portugal apresenta um “clima favorável, exposição solar e extensas áreas agrícolas”. Os procedimentos regulatórios são “pioneiros, favoráveis e estáveis” e os recursos humanos “altamente qualificados”, contanto ainda com entidades de apoio, consultores especializados e clusters complementares”, o que representa um confortável apoio às entidades.
A Alemanha (42%), a Espanha (33%) e Israel (17%) foram os principais mercados de exportação em 2022, cada vez mais necessários, tendo em conta o tamanho do mercado interno. Contudo, o desenvolvimento deste setor tem recebido atenção considerável, em particular do Governo, através do programa Portugal 2020, que investiu num projeto de research and development (R&D), três de investigação científica e nove na área da produção e inovação.
O Infarmed é a entidade responsável por todo o processo de licenciamento de canábis medicinal no país. Neste momento, existem 23 empresas em Portugal com licença de cultivo, 30 de importação, 33 de exportação, 14 de produção e 15 de comercialização.
Países Baixos e Alemanha são exemplos
No que toca ao estado da arte do velho continente, os Países Baixos e a Alemanha são os países mais avançados no processo regulatório da canábis medicinal. Na verdade, instituiu-se nos respetivos territórios desde 2003 e 2017, sendo que ambos os países já deram passos consideráveis no uso recreativo da canábis, apesar de este ainda não se encontrar legalizado.
Na Europa, o gasto com produtos à base de canábis duplicou de 2018 para 2020. No entanto, o mercado europeu, o principal destino de exportação, representa apenas 8% do expediente mundial, num mercado dominado totalmente pelos Estados Unidos (73%). Esperam-se 2.636 milhões de euros em vendas de canábis medicinal na Europa em 2025, o que mostra que a hegemonia americana pode sofrer ligeiramente com a concorrência deste continente que em apenas um ano (2020-2021) aumentou em 75% a venda destes produtos.
Globalmente, a América do Norte é o epicentro da rentabilidade no mercado, ao alcançar os 186 mil milhões de dólares (176 mil milhões de euros) no período 2018-2025. Por outro lado, a América do Sul encontra-se na “vanguarda da reforma da legislação de canábis”, com o Uruguai a tornar-se no primeiro país a legalizar totalmente o consumo recreativo. Na Oceânia, a Austrália tem ambições de ser um exportador global e na Ásia o Japão e a Coreia do Sul apresentam-se perante “oportunidades de nutracêuticos e cosméticos”. Em África, é no Sul que o progresso está mais latente, com avanços no uso medicinal a ser explorado na Zâmbia ou Guiné Equatorial.
Tendências de mercado
Heitor Costa, diretor de assuntos institucionais e de inovação da Apifarma, apresentou algumas das inúmeras tendências que hoje caracterizam a indústria da canábis, que “passou por uma transformação notável nos últimos anos, à medida que a legalização e a mudança de atitudes alimentaram um aumento na inovação”. Hoje, o consumidor tem à sua disposição um conjunto de produtos que oferecem “não só uma possibilidade de escolha, como aumentam o apelo pela canábis a um grupo demográfico maior”, referiu.
A diversidade de produtos com CBD (canabidiol), direcionados por exemplo ao desporto, à customização, à inovação tecnológica, à mediatização proporcionada por celebridades ou até à produção artesanal, fazem parte da panóplia de tendências de mercado.
Ultrapassar exigências
Quando a saúde está em causa, todo o cuidado é redobrado, pelo que o Infarmed exige clarividência no processo de canábis medicinal para que assim possa aprovar os produtos que lhe são apresentados pelas entidades que se querem fazer representar neste mercado. A Lei 33/2018 estabelece a estrutura legal para o usso de medicamentos, preparações e substâncias à base de canábis. Já a definição de requerimentos e procedimentos para a autorização de atividades chegou em 2021.
“Falhar em preparar-se é preparar-se para falhar”. Ao citar Benjamin Franklin, a consultora Helena Correia teve o objetivo de alertar a audiência para a importância de apresentar às autoridades reguladoras um produto que seja bem explicado, organizado e comprovadamente capaz. A introdução no mercado é antecedida pela aprovação de um dossiê que demonstre “qualidade, segurança e eficácia”.
Neste sentido, para ultrapassar a exigência de uma entidade reguladora, as entidades devem “planear atempadamente e avaliar todos os cenários, identificar os mercados em que os produtos serão comercializados, identificar todos os problemas regulamentares em cada mercado, planear o desenvolvimento do produto e submeter um dossier de qualidade”. Caso contrário, todo o processo de aprovação corre sérios riscos de atraso.
Como lidar com as inconformidades?
Luís Meitinhos Soares, da Cannavigia, outrora especialista no Infarmed e na Agência Europeia do Medicamento, apresentou um conjunto de conselhos a adotar no caso de o processo regulatório não ser aprovado na primeira tentativa.
Enviar um documento com “dezenas de páginas, sem detalhar que páginas e/ou secções contêm alterações” é um erro a evitar, tal como enviar “respostas extensas com informação não diretamente relevante” para a resolução do problema. “Não providencies evidências daquilo que fizeste, a não ser que tenhas sido instado a fazê-lo”, referiu ainda, ao pedir que se afirme claramente o que se irá fazer, cumprindo o que foi dito.
Sempre que se revela necessária a inclusão de documentos que demonstrem provas de correção, é importante fazer uma referência explícita” ao que foi apontado como não conforme. A notificação da autoridade reguladora sempre que o período temporal estipulado não for possível de cumprir, a escolha de respostas apropriadas, pensar bem acerca do problema ao invés de apenas corrigir e a descrição da revisão foram ainda destacadas.
Já Sérgio Neto, consultor na Cannacare, apresentou a sua experiência com o Infarmed, com quem a entidade entrou em contacto em 2018, tendo iniciado a sua atividade em 2022. “Sê consistente e comprometido”, referiu, para garantir que a entidade reguladora não representa “os maus da fita”, mas um propósito de garantia de qualidade e eficiência para que os produtos cumpram com o seu propósito junto da população.
Boas práticas de distribuição
Num mercado com ligações por todo o mundo, a distribuição conta com três áreas fundamentais para um resultado positivo: outsourcing, transporte e armazenamento. No primeiro caso, ter a noção de quem é capaz de nos ajudar a cumprir os objetivos poderá fazer a diferença, com um capital humano e técnico competente que agilizará o processo e tornará o negócio mais fluído.
A (re)qualificação é também relevante, em particular da frota (user requirement specification, operational qualification, performance qualification) ou da rota a seguir (para uma redução de riscos tendo como base aspetos como as condições ambientais e pontos de entrega).
Um mundo de possibilidades
De acordo com a especialista Giadha DeCarcer, da Ctrust, o cânhamo pode fazer parte de um vasto conjunto de setores industriais. Nomeadamente no setor alimentar, com snacks ou condimentos, mas também no que diz respeito a vitaminas, através de suplementos dietéticos. Na área do cuidado pessoal, as potencialidades também são reconhecidas em sabonetes, produtos de beleza, bálsamos, loções ou pomadas.
Além disso, o cânhamo pode ter aplicações nas indústrias automóvel, dos bioplásticos ou biocombustíveis. Do lado do têxtil, roupa, uniformes, meias e cobertores fazem parte da lista de possibilidades. Finalmente, do papel à comida animal, o cânhamo mostra ser versátil além do CBD, que contribui, por exemplo, para suplementos. Espera-se uma nova edição que desvende que caminhos seguir nas mais variadas áreas, em particular na saúde.
Artigo originalmente publicado na edição 128 da Marketing Farmacêutico, que pode ler na íntegra clicando aqui.