(…) quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim.
A arte de ser feliz, de Cecília Meireles
Não poucas vezes, talvez a mais delas, em muitas situações da nossa sociedade pós-moderna e pós-capitalista, vivemos uma permanente conspiração do silêncio em relação aos Cuidados Paliativos. Paliativo deriva do latim pallium que era o nome do manto usado pelos cavaleiros das Cruzadas para se protegerem das intempéries. Os Cuidados Paliativos têm este propósito fundamental, o de proteger, amparar, cuidar integralmente da pessoa e da sua família ao longo de todo o caminho novo que se abre quando há o diagnóstico de uma doença grave, incurável, progressiva e que, em anos a dias, pode levar à morte. Este acompanhamento abrange todas as dimensões da pessoa humana, desde o corpo que dói, às emoções que sentem, à família que amam, e à alma que sofre.
Algumas correntes defendem a mudança da designação de “Cuidados Paliativos” para outras alternativas mais redutoras e eufemísticas, que desenraízam estes cuidados do seu valor histórico e simbólico, na esperança que haja maior “aceitação” por parte da comunidade e dos próprios profissionais de saúde. Num tempo que se defende secular, vivemos de outros dogmas e atormentados por outros tabus que reconhecemos como normoses e, assim, nos impedem de sermos mais. Queremos fugir e ignorar a morte, o sofrimento, a intimidade, a espiritualidade; infantilizamo-nos em lugar de nos convocarmos para o crescimento; planificamo-nos em lugar de nos aprofundarmos. Porquê não acreditar no poeta e mudar os homens usando borboletas?
As pessoas que acompanhamos em Cuidados Paliativos são mestres e mostram-nos que o caminho para se ser inteiro não é fugir das questões fundamentais da vida, mas abraçá-las. Mostram-nos que querem ser cuidadas por uma medicina baseada na evidência e baseada na relação humana. Mostram-nos que a verdade e o afecto são essenciais para cuidarmos delas. Mostram-nos que é preciso encontrar o extraordinário no ordinário, porque o quotidiano é o grande tesouro. Mostram-nos que não é a morte que as atormenta, mas a vida mal vivida. Mostram-nos que apesar de, o valor superlativo da bondade, da gratidão e do amor são perenes. Mostram-nos que as regras podem ser reinventadas. Mostram-nos que o tempo é presente. Mostram-nos que a doença não é um impasse, mas uma travessia para mergulhar em novas dimensões de si mesmas. Mostram-nos que a vida é uma dádiva e um dom.
Embora os Cuidados Paliativos sejam associados à morte, a área principal do nosso cuidado é a Vida. Não tenhamos medo de olhar para nós e para os nossos e perceber como queremos realmente viver. Não tenhamos medo de ser mais verdadeiros, mais inteiros, mais humanos. O último apelo é o de conseguirmos fazer de Portugal um lugar onde as pessoas aprendam a ver as felicidades certas, isto é, um lugar onde não haja medo de viver.
Dra. Manuela Vidigal Bertão