Este ano, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) comemora 35 anos de existência. Apesar do ininterrupto desequilíbrio financeiro e do crescimento da dívida, designadamente dos hospitais, e dos tempos de espera exagerados para muitas cirurgias e consultas, o balanço dos 35 anos do SNS é claramente positivo. Nestes 35 anos, construiu-se um SNS que permite, de uma forma geral, que todos os cidadãos tenham acesso aos cuidados de saúde, para todas as patologias, e independentemente da sua condição económica e social. O SNS é universal, de âmbito geral, equitativo e solidário, e assenta no princípio do respeito pela vida e pela dignidade da pessoa humana. Os indicadores de saúde mostram que, globalmente, o SNS teve êxito na sua atividade. A taxa de mortalidade infantil diminuiu drasticamente, a taxa de mortalidade materna também, e a esperança de vida à nascença aumentou expressivamente. A qualidade da medicina praticada no SNS é indiscutível. Por exemplo, na área da transplantação, que é claramente uma joia da coroa da medicina, Portugal ocupa os lugares cimeiros, ao nível internacional, no número de transplantes realizados por milhão de habitantes. Também a qualidade da nossa formação médica é indiscutível. Repare-se que praticamente todos os médicos do SNS fizeram a sua formação em Portugal. Se compararmos o sistema de saúde português, que é principalmente constituído pelo SNS, com os sistemas de saúde no estrangeiro, observamos que o sistema de saúde português ocupa a 12ª posição, na última classificação da Organização Mundial de Saúde sobre o desempenho global dos sistemas de saúde, entre os sistemas de saúde dos 191 países membros da Organização das Nações Unidas. Se tudo isto é verdade, também não é menos verdade que o SNS enfrenta problemas graves que, se não forem resolvidos, põem em causa a sua própria existência e continuidade. No topo da lista das preocupações, estão naturalmente o combate ao desperdício e a sustentabilidade do SNS. Sobre isto, deixo algumas reflexões. Primeiro, é necessário mudar a forma como é feita a contratualização do financiamento entre as administrações regionais de saúde (ARS) e os hospitais. Penso que está claro para todos que a maneira como a contratualização está a ser feita não combate o desperdício. Basta olhar para o crescimento permanente da dívida dos hospitais para ver isto. Esta maneira de contratualizar não produz os efeitos desejados porque não é a ARS que define os objetivos com base nas melhores práticas e ninguém, no seio do SNS, tem um incentivo para ter um comportamento eficiente. Ter os hospitais a propor os objetivos com base, como um administrador hospitalar me explicou um dia, «na experiência e no conhecimento acumulados ao longo dos anos» é como ter alunos universitários a dizer ao professor que matéria sai no exame. Claro que, se fosse assim, em vez de sair toda a matéria, os alunos escolheriam apenas uma pequena parte, e provavelmente a parte da matéria que lhes desse menos trabalho. Depois, o que acontece se faltar dinheiro? Ninguém – entre os profissionais das ARS, os gestores hospitalares, os médicos, os enfermeiros e os demais profissionais de saúde – é responsabilizado e os desvios são cobertos pelo Ministério da Saúde. Pior do que isso, se as melhores práticas forem superadas, também ninguém é recompensado. Alguns médicos referem que, com os incentivos apropriados, os serviços, que dirigem, conseguiriam até duplicar a produção. Aliada a tudo isto, está naturalmente a observação das melhores práticas. É necessário perceber que hospitais são eficientes e que hospitais não o estão a ser e porquê. É necessário fazer um diagnóstico sistematizado para depois administrar os remédios convenientemente. É preciso que exista um sistema de informação adequado e que este sistema de informação seja uniformizado para permitir comparações rigorosas. Entretanto, uma coisa é certa. De acordo com estudos científicos que trabalharam com dados portugueses, se é verdade que há desperdício e que, em alguns hospitais, é possível fazer mais com menos, também é verdade que outros hospitais estão a produzir perto ou sobre a sua fronteira de eficiência e que cortes orçamentais transversais, que não incidam sobre os salários, implicam cortar no número de atos ou na qualidade dos cuidados prestados. A discussão da eficiência dos hospitais conduz frequentemente à apresentação de propostas no sentido de privatizar a prestação dos cuidados de saúde. Sobre isto, chamo apenas a atenção para o facto de eficiência e propriedade serem conceitos absolutamente distintos. Uma organização pública pode ser eficiente e uma organização privada pode ser ineficiente. Geralmente, não vemos organizações privadas ineficientes porque, quando elas são verdadeiramente ineficientes, vão à falência e saem do mercado. Isto já não acontece com as organizações públicas ineficientes que o Estado decide aguentar. Antes de introduzir alterações, penso que as autoridades de saúde em Portugal deveriam estudar melhor as implicações das alterações que introduzem. Por vezes, essas alterações ou não produzem efeitos ou produzem efeitos contrários aos desejados. Deixo aqui três exemplos. Primeiro, uma vez que todos os desvios são cobertos pelo Ministério da Saúde, a maneira como os hospitais são financiados atualmente corresponde no fundo ao reembolso de custos, tal como existia antes de as ARS «comprarem» serviços de saúde aos hospitais. Segundo, fizeram-se hospitais S.A., hoje E.P.E., para que os hospitais fossem geridos como empresas privadas eficientes e, com isso, para que aumentasse a eficiência dos hospitais e diminuísse o desperdício. No entanto, não se fizeram as alterações necessárias para que isto acontecesse, designadamente no que diz respeito aos incentivos. Estudos científicos posteriores mostram que não existem diferenças entre o desempenho dos hospitais E.P.E. e dos hospitais do setor público administrativo. Terceiro, decidiu-se agrupar hospitais com a ideia de que se estaria a explorar economias de escala. Desconheço se houve estudos com dados portugueses antes de os hospitais começarem a ser agrupados. No entanto, estudos científicos posteriores mostram que muitos hospitais agrupados têm até um desempenho pior do que teriam se continuassem separados. Finalmente, é preciso não esquecer que se não houver doentes, as pessoas têm mais qualidade de vida e o SNS tem menos custos. O atual sistema de financiamento assenta muito na doença e pouco na cura. Penso que, gradualmente, deveríamos deixar de financiar tanto o número de cirurgias e o número de consultas realizadas e passar a financiar a promoção de estilos de vida saudáveis e a prevenção da doença e das complicações. Isto é particularmente importante num contexto de envelhecimento da população, das doenças crónicas que daí decorrem e dos custos associados a elas. Os centros de cuidados de saúde primários devem naturalmente assumir um papel proeminente na promoção do bem-estar e na prevenção das doenças. Para que isto seja possível, os centros de cuidados de saúde primários devem ser a porta de entrada do SNS. Frequentemente, isto não é assim. Estima-se que até 50% das urgências são falsas urgências i.e. situações que são tratadas nas urgências dos hospitais e que deveriam ser tratadas nos centros de saúde. A integração vertical dos cuidados de saúde primários com os cuidados hospitalares e um financiamento por capitação podem constituir uma solução para tudo isto. Respondendo à questão que coloco no título deste artigo, o futuro do SNS depende muito da ação das autoridades de saúde portuguesas, dos estudos que fizerem antes de introduzir medidas, e do compromisso social que for possível alcançar. Por exemplo, a aposta nos cuidados de proximidade parece ser consensual. Se isto for assim, precisamos de ter tantos hospitais de cuidados diferenciados? João Marques Gomes (A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative – Research. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.) |