A pressão demográfica reclama que se introduzam reformas urgentes no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para garantir a sua sustentabilidade.
Por um lado, a despesa com a saúde tenderá a aumentar porque as pessoas vivem mais anos, e porque à medida que as pessoas vão ficando mais velhas, vão também aparecendo as doenças crónicas. Por outro lado, se nada for feito para contrariar a tendência atual, a população ativa em Portugal deverá diminuir drasticamente, o que terá um impacto negativo tremendo nas receitas fiscais. Por outras palavras, a despesa com a saúde tenderá a aumentar ao longo dos anos e haverá por cá cada vez menos gente para pagar a conta.
Entre as medidas urgentes que é necessário tomar, está a de saber como está a ser gasto o dinheiro dos contribuintes. Os portugueses devem poder passar a conhecer onde está a ser gasto o dinheiro dos seus impostos e qual é o retorno que resulta para a sociedade da aplicação desse dinheiro. Temos todos de ter a garantia que ele está a ser aplicado da melhor maneira possível, isto é, que cada cêntimo produz o maior bem‐estar social possível. Mas não é isto que acontece atualmente no setor público da saúde – de resto, também não é o que acontece em qualquer outra área de atividade do setor público em Portugal.
No estado atual das coisas, sabemos – ou pelo menos julgamos saber – onde é gasto o dinheiro dos contribuintes, mas desconhecemos se está a sê‐lo da maneira mais eficiente – isto é, que gera menos desperdício – e do modo mais eficaz – isto é, que mais resultados produz. Foquemo‐nos nos hospitais públicos portugueses. Escolhemo‐los para facilitar a exposição e porque é neles que se gasta – de longe – a principal fatia do orçamento do SNS.
Atualmente financiamos os hospitais públicos portugueses com base no volume que produzem. Que garantia temos que quem produz mais é quem produz melhor? Pense‐se no seguinte exemplo. Como pano de fundo, imagine‐se aquele anúncio a um detergente para a loiça que passava na televisão portuguesa há uns anos e onde apareciam duas aldeias – a aldeia de cima e a aldeia de baixo – com populações em tudo idênticas. Imagine‐se que, na aldeia de cima, existe um hospital que produz 100 cirurgias ao coração num determinado período de tempo; e, na aldeia de baixo, no mesmo período de tempo, existe um outro hospital que produz apenas 20 cirurgias ao coração. Com os critérios que temos hoje, dizemos que o hospital da aldeia de cima é cinco vezes mais produtivo do que o hospital da aldeia de baixo, aplaudimos o hospital da aldeia de cima e encorajamos o hospital da aldeia de baixo a aprender e a tornar‐se o hospital da aldeia de cima. Financiamos os hospitais em função disso. O hospital da aldeia de cima recebe cinco vezes mais dinheiro do que o hospital da aldeia de baixo – mantendo tudo o resto igual.
Agora, considere‐se a seguinte caricatura. Admita‐se que 95% dos doentes operados no hospital da aldeia de cima sofrem complicações pós‐cirúrgicas; que estes doentes têm um enfarte do miocárdio ou um acidente vascular cerebral (AVC), o que obriga a novas intervenções cirúrgicas, a novos internamentos e a mais consumo de medicamentos. E suponha‐se que nenhum dos doentes que foi operado no hospital da aldeia de baixo tem complicações pós‐cirúrgicas. Mais do que isso, que, na sequência da cirurgia, esses doentes voltam a ter a qualidade de vida que tinham antes sequer de existir a necessidade da cirurgia.
Enquanto cidadão e potencial doente, em que hospital o leitor gostaria de ser operado? E, do ponto da vista do sistema público de saúde, que hospital deve ser considerado mais produtivo? O hospital que fez mais cirurgias, mas que operou mal os doentes, que não valorizou suficientemente o impacto que a sua ação poderia ter na qualidade de vida deles – e dos seus familiares – e cuja conduta obrigou a mais despesa de saúde no futuro ou o hospital que fez menos cirurgias, mas que devolveu aos doentes a vida que tinham antes de existir um problema de saúde por resolver e que não gera custos futuros para o sistema público de saúde?
Atualmente, com base em quê dizemos que um prestador de cuidados de saúde – um hospital, um centro de saúde ou um médico – é melhor do que o outro? Afirmamo‐lo em função daquilo que ouvimos a um familiar ou a um amigo ou do que lemos nos jornais – por exemplo, porque o médico fez um doutoramento nesta ou naquela universidade prestigiada. Na realidade, dizer que um prestador de cuidados de saúde é melhor do que o outro é quase um ato de fé. Dispomos de muito poucos dados – para não dizer que não dispomos de dados nenhuns – para podermos aferir o desempenho dos prestadores de cuidados de saúde.
Para que os portugueses possam ter a certeza que o dinheiro dos contribuintes é bem gasto, devemos começar a medir os desfechos de saúde logo que possível; a recolher informação sobre o que acontece aos doentes ao longo do tempo, para sabermos exatamente em que posição relativa os prestadores de cuidados de saúde se encontram, aos níveis nacional e internacional, e para podermos melhorar aprendendo com quem objetivamente conseguiu melhores resultados de saúde.
Se Portugal não o fizer, poderá perder o comboio da sustentabilidade do serviço público de saúde.
João Marques Gomes
(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de investigação Nova Healthcare Initiative. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)