Saúde perdeu 1.500 milhões de euros em três anos
12-Maio-2014
Três anos de cortes na despesa com transporte de doentes, com exames de diagnóstico e terapêutica, com horas extraordinárias e, sobretudo, com medicamentos não provocaram mossa nas estatísticas da atividade assistencial do SNS. Mas multiplicam-se as suspeitas de que há problemas. Vai ser preciso mais tempo para avaliar o impacto real da crise na Saúde.
Em três anos, o número de doentes que faltam às consultas aumentou de forma significativa no Centro Hospitalar do Porto (CHP). Se antes de 2011 a percentagem dos que não apareciam rondava os 10 a 11%, agora atinge 15%, calcula o presidente do Conselho de Administração do CHP, Fernando Sollari Allegro. Os doentes faltam sobretudo porque escasseia o dinheiro para custear os transportes, especula o administrador hospitalar, para quem não será por acaso que «a primeira quinzena [do mês] não é igual à segunda», período em que as ausências são mais frequentes.
«Os cidadãos sentem algumas dificuldades. Os transportes foram muito cortados, as taxas moderadoras subiram e isso tem significado», acredita Sollari Allegro, que desvaloriza as reduções do orçamento do seu centro hospitalar – o CHP perdeu 28 milhões de euros, cerca de 16% do total do orçamento anual –, até porque estas acabaram por ser compensadas pela diminuição de gastos com os salários dos funcionários e com os fármacos. O que o preocupa e muito é a perda de recursos humanos (tem hoje menos 290 profissionais) e as barreiras que enfrenta para recuperar os que vão saindo. «Sentimos muita dificuldade no recrutamento de pessoal. Há mais burocracia, os governos de direita são mais controladores», lamenta, citado pelo “Público”.
«Os dados não apontam, por enquanto, para dificuldades no acesso ao SNS. Mas quem está no terreno ouve o que dizem os doentes. E eles dizem que não vêm às consultas porque não têm dinheiro para pagar transportes ou taxas moderadoras», corrobora Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.
O corte em um terço da despesa com transporte de doentes não urgentes era justamente uma entre as várias dezenas de medidas inscritas no memorando de entendimento assinado com a troika na área da saúde. Foi, pode dizer-se, cumprido à risca. Doentes que antes tinham transporte gratuito passaram a pagá-lo. Graças à revisão das regras de comparticipação do transporte de doentes não urgentes e outras medidas, entre 2010 e 2013 a despesa diminuiu 54,9 milhões de euros, uma redução de 36,8%, contabiliza o Ministério da Saúde.
Entretanto, a confusão instalou-se e, apesar de a tutela garantir que os doentes oncológicos têm direito a transporte gratuito mesmo para as consultas de seguimento, há autarquias que começaram a patrocinar as viagens de alguns pacientes com cancro até às grandes cidades. Em março passado, responsáveis da Sociedade Portuguesa de Transplantação expressaram publicamente a sua preocupação devido às faltas de alguns doentes, também por causa dos transportes.
Em algumas áreas começaram a surgir outros dados que evidenciam sinais preocupantes. Entre 2010 e 2012, a mortalidade infantil aumentou de 2,5 para 3,4 por mil (entretanto voltou a diminuir para 3 por mil, no ano passado) e as recaídas no uso de heroína quase triplicaram. Outro indicador que o professor da Escola Nacional de Saúde Pública e ex-diretor-geral da Saúde, Constantino Sakelarides, fez questão de destacar, porque o impressionou particularmente, foi o facto de o número de cirurgias oncológicas ter diminuído em 2012, o que sucedeu pela primeira vez em seis anos.
Nos últimos tempos, têm-se multiplicado também as notícias que dão conta de casos trágicos de doentes que esperaram tempo demais por exames, como o da mulher que aguardou dois anos por uma colonoscopia para concluir que tinha um cancro já inoperável, e os relatos de vítimas de acidentes de viação que foram transportadas para os hospitais pelos bombeiros porque as viaturas médicas de emergência (VMER) estavam inoperacionais, por falta de médico. São «casos pontuais», desdramatizaram os responsáveis do Ministério da Saúde que, ainda assim, trataram de mudar as regras de forma a aumentar o número de colonoscopias no SNS e conseguir que mais médicos estivessem disponíveis para integrar as tripulações das VMER. «Estas notícias fazem parte de uma campanha contra o ministério», desvaloriza Sollari Allegro.
«Os primeiros afloramentos da asfixia financeira começam a aparecer», sustenta Mário Jorge Neves, da Federação Nacional dos Médicos, para quem é inequívoco que hoje «o SNS está esvaziado em termos de resposta geral». «Adiam-se cirurgias por falta de material, até de simples batas, não se fazem exames, faltam medicamentos para entregar a doentes crónicos», enumera. «A insatisfação profissional é generalizada», acrescenta, lembrando que foram muitos os médicos que optaram pela reforma antecipada.
Os dados oficiais de monitorização da atividade do SNS desmentem esta interpretação. Provam mesmo que, nestes três complicados anos, até se fizeram mais cirurgias, mais consultas nos hospitais e mesmo mais urgências (estas diminuíram em 2012, mas voltaram a aumentar no ano passado). As taxas moderadoras duplicaram sim, mas «mais 1,4 milhões de pessoas ficaram isentas», lembra o ministério, que nota que apenas 20% dos cidadãos que recorrem ao SNS têm de as pagar e que o acréscimo de custos (100 milhões de euros) foi compensado pelas poupanças com medicamentos. Neste ponto, o ministério sublinha que, de forma deliberada, quis ficar aquém do que pedia a troika (receitas adicionais da ordem dos 200 milhões de euros).
«Não houve um descalabro de acesso, não se verificou uma hecatombe», defende o especialista em economia da saúde Pedro Pita Barros. Com «muitos vícios» e propiciando «muitos abusos», o sistema acabou por demonstrar «uma grande capacidade de adaptação», sustenta o economista que admite, porém, ser impossível saber, por enquanto, «se se fez um excesso de ajustamento ou não», até porque não foram monitorizadas as necessidades em saúde.
«Há suspeitas de que há dificuldades no acesso, são fortes, mas não passam de suspeitas por enquanto. As análises só se podem fazer com tempo, o impacto é lento», reflete Pedro Lopes Ferreira, do Observatório Português do Sistema de Saúde. No relatório anual de 2013 (o deste ano ainda não foi apresentado), os especialistas do observatório faziam, porém, incidir o foco da sua análise sobre «as duas faces da saúde», contrapondo à «versão oficial» os dados disponíveis sobre «a experiência real das pessoas». Davam o exemplo de um estudo (baseado numa amostra de 1252 idosos residentes na Área Metropolitana de Lisboa) que indicava que 30% dos portugueses com mais de 65 anos começara a cortar nas despesas de saúde, deixando sobretudo de ir a consultas particulares, de comprar óculos ou aparelhos auditivos e tentando poupar nos medicamentos. Concluíam ainda que o Governo cortara, até 2012, 710 milhões de euros na saúde, mais 160 milhões do que seria necessário para cumprir as medidas do memorando, citando a consultora PricewaterhouseCoopers&Associados.
Despesa caiu 15%
Há semanas, na 11ª avaliação, o FMI contabilizava que, face a 2010, as poupanças na saúde ascenderam a 1,5 mil milhões de euros e a despesa no setor caiu cerca de 15%. O Ministério da Saúde acrescenta que foi possível melhorar significativamente a sustentabilidade financeira do SNS, e que o défice global baixou de 833 milhões de euros, em 2010, para 126 milhões de euros, em 2013. «Os gastos com meios complementares de diagnóstico e terapêutica comprados a privados caíram 112,8 milhões de euros, neste período (menos 14,8%), enquanto a poupança com horas extraordinárias foi superior a 152 milhões de euros (menos 45,5%)».
«Reduziram-se os custos de exploração, mantiveram-se os níveis de produção mas não se conseguiu resolver o problema crónico de acumulação de dívida», constata Marta Temido, que lamenta que, ao fim de todo este tempo, o modelo português continue «baseado nos hospitais».
Não terá sido por acaso que aquela que era uma das principais reformas estruturais da saúde definida no memorando – a reestruturação da rede hospitalar, que implica fechos e fusões de serviços e especialidades – foi sendo adiada. O memorando previa a apresentação de um plano detalhado logo no final de 2012. Agora, a dias da saída da troika, restam poucas certezas sobre o que vai acontecer. A portaria publicada no início de abril (que classifica e hierarquiza os hospitais de acordo com as suas responsabilidades) gerou uma onda de contestação que está para durar, apesar de os responsáveis do ministério se terem apressado a assegurar que o documento é apenas indicativo. Autarcas, partidos de oposição e profissionais de saúde reclamam em uníssono a suspensão da portaria. «Quando se tenta mexer no desenho é um” ai Jesus”», critica Marta Temido. «Não se vai passar nada, foi um balão de ensaio para ver como eram as reações, ninguém faz reformas a um ano de eleições legislativas», diz Sollari Allegro.
Ao mesmo tempo, a reforma dos cuidados de saúde primários, que com a criação das Unidades de Saúde Familiar (equipas de médicos, enfermeiros e assistentes que se auto-organizam nos centros de saúde), veio revolucionar o sistema ainda no tempo do ex-ministro Correia de Campos, abrandou, depois do pico verificado entre 2009 e 2010. «Ao fim de sete anos desta reforma, ainda não temos metade do país coberto» (as 398 USF actuais dão resposta a 4,8 milhões de pessoas), lamenta Bernardo Vilas Boas, da Associação Nacional de USF. O ministério adianta que neste período abriram 92 USF. Vilas Boas retorque que esperava muito mais: «Devia ter aberto pelo menos o dobro».