Saiu recentemente uma portaria (nº 97/2018) que alarga os serviços que podem ser prestados pelas farmácias comunitárias. Foi publicado sem grande alarido, e passou despercebido à maior parte da população (e até passou em grande medida à margem do debate público). E não havia motivo para ser diferente disso. Trouxe, porém, à memória o que se passou há pouco mais de uma década com a alteração do regime jurídico das farmácias comunitárias, nomeadamente liberalizando a respetiva propriedade, com a possibilidade de venda de medicamentos não sujeitos a receita médica noutros locais, e meia década depois com a alteração das margens de remuneração reguladas nos medicamentos sujeitos a receita médica. E em 2007 houve um choque entre duas antevisões: uma previsão do Governo de então sobre os efeitos positivos para o cidadão de uma maior abertura do funcionamento das farmácias comunitárias, que contrastava com uma perspetiva muito negativa dos atores políticos da oposição, que falavam em monopolização por parte de grandes redes que entrariam num processo de integração vertical (juntando farmácias comunitárias e distribuição grossista) e redução acentuada do número de entidades independentes. O “choque” das medidas adotadas durante o programa de ajuda financeira internacional a Portugal trouxeram mudanças bem mais rápidas, duradouras e diretas às farmácias comunitárias, com os efeitos cumulativos de redução dos preços dos medicamentos sujeitos a receita médica e da redução das margens de remuneração a eles aplicáveis que constituem receita das farmácias. Nessa sucessão de “choques” com meia década de permeio, o caminho das farmácias no sentido de procurarem novas formas de intervenção foi sendo construída, nomeadamente na identificação e criação de condições para a prestação de serviços de saúde. Olhando para trás, não se verificaram as versões mais catastrofistas, e foi-se generalizando a prática de descontos pelas farmácias, adaptação dos horários de funcionamento, e procura de outras fontes de rendimento. O “choque” sobre as margens e os preços dos medicamentos criou dificuldades de sobrevivência a muitas farmácias, embora a rede de farmácias como um todo tenha conseguido sobreviver. É hoje bastante claro que não houve uma forte integração vertical nem uma concentração horizontal em poucos grupos económicos (é certo que a lei previa desde o início limitações a essa concentração, que alguns viam como sendo ineficaz). A qualidade do serviço das farmácias não teve uma degradação como anunciado (dificuldades pontuais foram surgindo, mas foram sendo resolvidas). O caminho de maior inserção das farmácias comunitárias na lógica de sistema de saúde, que vai além da dispensa de medicamentos, está então a ser feito, e coloca desafios vários, às farmácias, a outros profissionais e entidades do setor da saúde, e ao Estado, na sua tripla intervenção de financiador, prestador e regulador (as duas primeiras, através sobretudo do Serviço Nacional de Saúde). Em particular, dois elementos vão ser centrais. Por um lado, construir a capacidade de articulação entre entidades no acompanhamento de doentes ou nas iniciativas de “promoção de estilos de vida saudáveis” – obriga a construir relações de confiança mútua entre diferentes grupos profissionais. Por outro lado, é fácil uma regulação excessiva limitar ou mesmo destruir as oportunidades dessa inserção. E, claro, terá também que ser encontrado um modelo de pagamento desses serviços, alguns possivelmente pelo próprio Serviço Nacional de Saúde. Esse modelo de pagamento não necessita de ficar limitado a um preço por atos, e deverá contemplar outras dimensões associadas ao sucesso das intervenções de saúde que sejam feitas. Nesta evolução da farmácia retoma-se afinal uma característica antiga, o papel do conhecimento técnico do farmacêutico, numa rede de proximidade ao cidadão. Este “choque” suave da prestação de novos serviços irá levar a novos modelos de farmácia, incluindo o espaço físico e o modo como os farmacêuticos se inserem na comunidade de profissionais de saúde do sistema de saúde, numa evolução que dá resposta às pressões, incluindo as financeiras, da última década. A esta expansão do papel das farmácias comunitárias terá que responder o Serviço Nacional de Saúde, e os seus profissionais, em particular, os médicos, com uma disponibilidade para articulação e atuação conjunta. Ao passo legislativo agora dado, há agora que juntar a capacidade de prestar esses serviços de forma articulada, que depende das farmácias e das entidades do Serviço Nacional de Saúde e do sistema de saúde com quem se terá de relacionar. Pedro Pita Barros, |