
A implementação de inteligência artificial (IA) nos sistemas de saúde, e particularmente no Serviço Nacional de Saúde (SNS), representa simultaneamente uma oportunidade potencialmente transformadora e um desafio arriscado significativo. No entanto, nos últimos tempos, a narrativa parece ter passado de uma questão sobre se a IA será implementada para quando tal irá acontecer, sem muita análise de como esta deverá ser feita.
Por um lado, é impossível negar a curiosidade despertada pelas diversas ferramentas com as quais vamos contactando. Em primeira ou segunda mão, já muitos testemunharam algumas das suas materializações: uso de large language models (e.g., ChatGPT) para fazer correções em textos, remoção de estranhos de uma fotografia no parque ou até robôs que aspiram sozinhos. Para a saúde, será fácil imaginar a organização de registos clínicos eletrónicos, o diagnóstico automático em radiografias ou até cirurgias robóticas autónomas como potenciais funcionalidades, muito plausíveis e úteis.
Porém, ao mesmo tempo, devem ser consideradas questões fundamentais quanto à forma como estas ferramentas são desenvolvidas, à sua utilização e às suas consequências. Falamos de tópicos como a proteção da privacidade, o consumo de energia, a equidade no acesso e utilização, a responsabilização pelos seus resultados e vieses aprendidos e replicados.
Perante ecos familiares de muitas promessas e receios da transição digital, este novo conjunto de tecnologias é apresentado (e vendido) como absolutamente disruptivo, urgente e necessário. Mas, se as possibilidades parecem infinitas, a imaginação não pode ser o único limite.
Mediante a sensação de mudança contínua e de uma vaga confusão sobre o significado e implicações dos tópicos discutidos, à luz de crescentes pressões sobre o setor da saúde, pode ser aliciante aceitar e querer implementar a IA. Quão desejável seria uma solução capaz de lidar com a complexidade, sem precisar de instruções muito refinadas (ou que podemos até desconhecer)? Ao mesmo tempo, nem todas as vozes mais esclarecidas são ouvidas, e muitas discussões importantes acabam limitadas a conversas privadas numa pausa para café.
Reconhecendo a dificuldade de encontrar uma reflexão sóbria, fundamentada e estratégica entre tantas (e tão contraditórias) notícias e opiniões, tomou-se a iniciativa de organizar um grupo de trabalho multidisciplinar no NOVA SBE Health Economics & Management Knowledge Center (NHEM) para discutir a implementação da Inteligência Artificial no Serviço Nacional de Saúde – IA@SNS. Neste âmbito, durante os próximos meses, serão propostas perguntas críticas (e sugestões de respostas) sobre o que são estas novas metodologias, como devem ser desenvolvidas e aplicadas e quais os benefícios expectáveis.
O nosso objetivo principal é desenvolver um conjunto de recomendações concretas e cientificamente fundamentadas que possam orientar a implementação de IA no SNS. Assim, pretendemos também informar todas as partes interessadas – utentes, doentes, profissionais de saúde, gestores, pagadores e governantes – e esclarecer os decisores na utilização e gestão do SNS.
Cientes da complexidade e do potencial impacto desta ambição, queremos assumir uma postura transparente e uma abordagem colaborativa. Para tal, na construção transparente de um caminho estratégico a esta reflexão, começamos o discurso aberto apresentando algumas das questões-chave que permitirão estruturar a implementação da IA no SNS de forma sistemática e fundamentada. Não sendo agora a intenção de apresentar as respostas completas, avançamos os pormenores e as direções que nos parecem mais relevantes.
1 – Definir Inteligência Artificial
Reconhecendo a sua natureza multifacetada e multimodal, é precisamente pela ambiguidade atual que importa escolher ou construir uma definição com implicações operacionais e legais.
Diversas entidades, como a Organização Mundial de Saúde, têm vindo a apresentar as suas propostas. Até ao momento, a definição do Regulamento da Inteligência Artificial (2024/1689) [1] do Parlamento Europeu e do Conselho pode configurar-se como uma de facto consideração legal, com aplicação em Portugal.
Segundo esta aceção do conceito, sistema de IA é um “sistema baseado em máquinas concebido para funcionar com níveis de autonomia variáveis, e que pode apresentar capacidade de adaptação após a implantação e que, para objetivos explícitos ou implícitos, e com base nos dados de entrada que recebe, infere a forma de gerar resultados, tais como previsões, conteúdos, recomendações ou decisões que podem influenciar ambientes físicos ou virtuais”.
Utilizar uma definição comum e específica permite saber, com mais rigor, aquilo sobre o qual estamos (ou não estamos) a falar. Por exemplo, neste caso, um sistema de IA não se limita à aplicação de redes neuronais ou a LLM, conforme mais recentemente popularizado.
2 – Escolher os Princípios da IA no SNS
Respeitando os pressupostos éticos e legais, desde a Constituição Portuguesa à Lei de Bases da Saúde, este conjunto de princípios deve ser abrangente o suficiente e claro o bastante para orientar o desenvolvimento e utilização de IA, mesmo na ausência de regras ou instruções específicas.
Sumariamente, deverão integrar considerações sobre a pertinência e admissibilidade da IA, sobre o seu desenvolvimento e implementação corretos, sobre garantias do seu funcionamento adequado para todos e sobre os benefícios em saúde. Atualmente, muitos exemplos difundidos e utilizados falham a adequação a pelo menos um destes domínios.
Criticamente, um dos princípios práticos que devem ser tidos em conta na implementação de qualquer nova solução é o da manutenção da integridade do SNS. Um sistema de saúde assenta na interoperabilidade das suas plataformas e na capacidade de navegação entre níveis e serviços de prestação de cuidados. Acrescentar novos instrumentos sem observar a acessibilidade na implementação ameaça ser um erro com elevados custos económicos e com o risco de afastar (ainda mais) os utentes do serviço público.
3 – Identificar as Necessidades (Atuais e Futuras) com Maior Potencial de Proveito
No seguimento da reflexão anterior, o próximo passo foca-se em cruzar as necessidades de saúde sem resposta adequada (atuais e futuras) do SNS com as ferramentas que melhor lhes poderão servir. Mais do que enumerar aquilo que a IA pode fazer (ou já faz) muito bem, importa considerar o benefício real comparando com as soluções existentes e tentando abordar problemas sem resolução aparente.
De salientar, as necessidades de saúde da população portuguesa transcendem os problemas com maior saliência mediática, devendo ser realizado um processo sério de análise e priorização, a que o Plano Nacional de Saúde se aproxima. Sendo verdadeiros e importantes os problemas de acesso às urgências ou falhas nos transportes de doentes em ambulâncias, é fundamental reconhecer que existem outros que pela sua magnitude (e.g., mobilidade causada pela diabetes mellitus) ou consequência (e.g., dependência dos serviços de urgência para problemas não agudos ou não graves) poderão ser prioritários.
A promessa da IA apenas poderá concretizar-se se acompanhar uma reforma estrutural do serviço de saúde, não bastando a aplicação esporádica e dispersa de “paliativos”, amiúde, com relações de custo-benefício são muito restritas, ou que não são estudadas, ou cujo estudo deixa reservas. Paralelamente, urge construir soluções para dinamizar uma Economia de Bem-Estar, assente nos princípios da prevenção da doença e da promoção da saúde, por forma a combater a montante os problemas a jusante, como o crescente afluxo aos serviços de urgência ou os custos imparáveis com terapêuticas para doenças crónicas.
4 – Identificar Bons e Maus Exemplos
Considerando que já várias aplicações de IA já se verificaram no SNS, e noutros contextos nacionais e internacionais, é muito pertinente analisar o que já foi feito, o que pode ser extrapolado para o contexto em questão e o que deve ser alterado. Assim, acreditamos que uma parte importante da discussão deve integrar aprendizagens de bons e maus exemplos, quer de intervenções já verificadas, quer de outros potenciais casos de uso ainda por explorar. De destacar, a avaliação destas instâncias deve ser feita à luz das respostas às questões-chave anteriores.
Desta forma, salientamos alguns dos casos com relevância para o SNS. Começando pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS, EPE), encontramos vários projetos desenvolvidos [2]:
- “Utilização de Inteligência Artificial para potencializar o Rastreio Teledermatológico” – conjuntamente com a Associação Fraunhofer Portugal Research;
- “Biomarcadores neuroimagiológicos para o Diagnóstico de doenças Neuropsiquiátricas, com recurso a Inteligência Artificial” – conjuntamente com a Associação para a Investigação e Desenvolvimento de Ciências, com parceiros como o Hospital Fernando da Fonseca (Amadora), o Hospital da Senhora da Oliveira (Guimarães) e o Centro Hospitalar Lisboa Norte;
- “Identificação e Previsão de Procura de Urgências Hospitalares” – conjuntamente com a Fundação Calouste Gulbenkian.
Mais recentemente, a Unidade Local de Saúde do S. João apresenta a implementação de IA através de uma ferramenta de auxílio à tomada de decisão clínica, no serviço de urgência, na interpretação de exames de radiologia. Outra iniciativa consiste na participação de projetos investigação para validação de sistema de para um diagnóstico mais fiável de COVID-19 a partir de tomografias computadorizadas.
Outros exemplos de potenciais aplicações de IA no SNS, podem ser interessantes para otimizar processos, como por exemplo o uso de chatbot ao serviço do doente para esclarecimento de dúvidas, ou o uso de ferramentas que convertem a voz em texto escrito permitindo uma gestão de tempo centrada no doente.
5 – Recomendações de gestão de mudança para a implementação de IA no SNS
Preparar o SNS para a integração da IA, e as suas implicações, é essencial para potenciar a sustentabilidade e a relevância da intervenção. Este processo exige uma transformação cultural e estrutural, alicerçada em educação, transparência e cooperação, fundamentais para enfrentar os desafios e aproveitar as oportunidades oferecidas pela IA.
Assim, exigirá também ter em conta que quanto maior a mudança, mais difícil (e improvável) será o seu sucesso. Adicionalmente, é importante considerar dificuldades anteriores com a transição digital e outras intervenções dirigidas à melhoria da gestão e dos processos de tomada de decisão.
Como fazer a capacitação contínua dos profissionais da saúde – de médicos a gestores – para a utilização segura e efetiva de ferramentas de IA, tendo em conta os esforços de formação semelhantes atualmente implementados? Como assegurar a utilidade e consequência das monitorizações e avaliações de impacto destas ferramentas na saúde e gestão da prestação de cuidados, tendo em conta os processos que são comummente aplicados?
Estas são dúvidas pertinentes e pedem esclarecimentos necessários à crítica e implementação da “Estratégia Digital Nacional” [3] e da “Agenda Nacional de Inteligência Artificial”, conforme propostas pelo XXIV Governo Constitucional. Da mesma forma, deverão ser consideradas na apreciação de alinhamentos estratégicos de entidades como a Direção-Executiva do SNS, a Direção-Geral da Saúde ou os SPMS.
6 – Preparação de comunicação das reflexões a decisores e partes interessadas
Por último, por ser transversal aos tópicos previamente mencionados, importa considerar a forma como este trabalho de reflexão e construção deve ser pautado e concretizado. Além desta publicação inicial, temos como objetivo desenvolver as análises às várias questões-chave num formato de policy paper, com linguagem clara e rigorosa.
Assim, contamos com a perspetiva crítica e participativa de todas as partes interessadas, para nos ajudarem a melhor responder às necessidades do SNS, relativamente à sua perspetiva e conduta perante a IA. Por isso, convidamos profissionais de saúde, especialistas em tecnologia, gestores hospitalares, investigadores e demais interessados a contribuírem para este projeto.
Se pretende participar nesta discussão ou partilhar a sua perspetiva, contacte-nos através do email nhem@novasbe.pt, com o assunto “IA@SNS”. Acreditamos que considerando as experiências, os conhecimentos e as perspetivas de outros interessados poderemos fazer um melhor contributo para a saúde de todos os que o SNS serve.
O Grupo de Trabalho IA@SNS do Nova SBE Health Economics & Management Knowledge Center (NHEM KC):
Ana Rita Santos – Farmacêutica especialista em Farmácia Hospitalar, investigadora em Health Economics no Value for Health CoLAB, doutoranda em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública.
Henrique Vasconcelos – Médico, investigador em Health Economics na Escola Nacional de Saúde Pública e consultor em Saúde.
José Miguel Diniz – Médico interno de Saúde Pública, mestrando em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública, doutorando em Ciência de Dados de Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
Mário Ribeiro – Enfermeiro, professor assistente na CESPU, membro da The Artificial Intelligence and Health Research Unit.
Pedro Ramos – Médico interno de Saúde Pública, mestrando em Saúde Pública na Escola Nacional de Saúde Pública.
Referências:
1 – https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:L_202401689