To C or not to C – Sobre o dilema das altas percentagens de partos por cesariana 1340

A percentagem de cesariana tem vindo a aumentar em todo o mundo muito rapidamente. – É este tipo de afirmação que mais recentemente se tem vindo a disseminar relativamente à necessidade de melhorar a gestão de partos por cesariana. É certo que um parto natural, quando possível, é sempre mais vantajoso para todos os envolvidos. No entanto, será que também não há riscos na demonização da cesariana?

A taxa de cesariana tem de facto vindo a aumentar de uma forma generalizada, tal como o desenvolvimento da medicina e os avanços tecnológicos. Isto é, como acontece com a maior parte dos procedimentos cirúrgicos, estes tendem a tornar-se mais fáceis à medida que os médicos têm acesso a uma melhor especialização e os hospitais a mais e melhores recursos. Curiosamente, neste processo a cesariana tornou-se bastante comum em alguns países. Enquanto que o paciente geralmente prefere evitar uma cirurgia e preocupa-se com a justificação médica da mesma, em relação à cesariana há outras questões que tendem a afectar o processo de tomada de decisão (1,2). Em termos logísticos, uma cesariana é muito mais atraente do que um parto normal, pode ser agendada e permite ao médico ter mais controlo sobre o parto e potenciais complicações. Para além disso, uma vez que uma cesariana é muito mais cara do que um parto normal, uma entidade privada tem bastantes incentivos monetários para proceder com a cirurgia. Por outro lado, as mães acabam por ter alguma preferência por cesarianas pela (muitas vezes falsa) crença de que é menos doloroso e mais fácil de aceitar. Nenhum destes motivos tem um fundamento médico, no entanto existe já bastante evidencia empírica de que estes motivos têm contribuído para o aumento das taxas de cesariana. Entre os problemas associados com uma cesariana por motivos não médicos (em comparação com um parto vaginal) está o aumento dos riscos de infeções a curto e longo prazo, a implicação de que (muito provavelmente) os partos seguintes também serão por cesariana, uma recuperação mais complicada e a sobre-utilização desnecessária de recursos (1,2).

Nos EUA, por exemplo, a taxa de cesariana aumentou até meados de 2010 (3). Entretanto, dado o aumento galopante do número de cesarianas, começou a surgir uma enorme pressão para reverter esta tendência. Já em países com alta escassez de recursos, a taxa de cesariana é muito baixa ou inexistente, muito provavelmente por não terem ainda acesso a esse tipo de técnicas ou por razões culturais. Ou seja, nos tempos que correm, os países mais modernizados estão agora a tentar aproximar-se dos valores das taxas de cesariana dos países com menos acesso a inovação (por motivos diferentes, claro) (4). Os restantes são países mais intermédios em termos de desenvolvimento, onde as taxas de cesariana estão ainda muito acima do recomendado pela WHO (10-15% (5)).

É preciso salientar que a motivação por detrás de uma percentagem é mais importante do que a atingir esse valor em si. O objectivo de ter uma taxa de cesariana como referência é de reduzir ao máximo as cesarianas motivadas por factores não médicos, não simplesmente de forçosamente descer esse número a todo o custo. É certo que há um problema a resolver, mas seja de parto normal ou cirúrgico o objectivo final deve ser, sempre e indiscutivelmente, o de garantir a sobrevivência e a saúde do bebé e da mãe ao máximo.

Um estudo realizado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto conduziu e analisou 3378 questionários online sobre experiências de parto, com dados de mulheres que foram mães em Portugal entre Janeiro de 2012 e Março de 2015. Nesta amostra, mais de dois quintos dos partos vaginais foram partos instrumentados, dos quais quase dois terços foram efetuados com recurso a ventosa e um terço com recurso a fórceps (6). A utilização de instrumentos pode levar a casos de traumatismo como hemorragias cerebrais, paralisias e graves problemas no baço ou no fígado. Existe já um estudo recentemente publicado no Canadian Medical Association Journal onde os autores constatam que nos casos em que não existiam sinais prévios de complicações, a probabilidade do bebé sofrer um traumatismo grave com a utilização de fórceps ou vácuo durante o parto foi substancialmente mais alta do que com recurso a cesariana (5 a 10 vezes mais provável) (7). Estes traumas incluem hemorragias cerebrais, paralisias e danos severos ao baço ou ao fígado.

Neste contexto, é necessária muita precaução na definição de políticas a ser adotadas nos hospitais, nomeadamente nos hospitais públicos onde a pressão para diminuir número de cesarianas tem vindo a aumentar. A má gestão na diminuição do número de cesarianas pode levar a consequências gravíssimas e permanentes para os pacientes. O debate sobre a necessidade de diminuir a taxa de cesarianas em certos países deve ser discutido com cautela e garantindo ao máximo que todas as decisões sejam tomadas em prol da saúde e por motivos médicos, antes de qualquer outro fator, para ambos os lados.

 

Sara Valente de Almeida

(A coluna Notas da Nova é uma contribuição para a reflexão na área da saúde, pelos membros do centro de conhecimento Nova SBE Health Economics & Management. São artigos de opinião da inteira responsabilidade dos autores.)

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Referências

1. Betrán AP, Ye J, Moller AB, Zhang J, Gülmezoglu AM, et al. (2016). The Increasing Trend in Caesarean Section Rates: Global, Regional and National Estimates: 1990-2014. PLOS ONE 11(2): e0148343.
2. Niino Y. (2011) The increasing cesarean rate globally and what we can do about it. BioScience Trends. 5(4):139-150.
3. American College of Obstetricians and Gynecologists (College); Society for Maternal-Fetal Medicine, Caughey AB, Cahill AG, Guise JM and Rouse DJ (2014). Safe prevention of the primary cesarean delivery. Am J Obstet Gynecol. 2014 Mar;210(3):179-93.
4. Betrán AP, Ye J, Moller AB, Zhang J, Gülmezoglu AM and Torloni MR (2014). The Increasing Trend in Caesarean Section Rates: Global, Regional and National Estimates: 1990-2014. PLoS One. 2016;11(2):e0148343.
5. WHO (2015). WHO Statement on Caesarean Section Rates.
6. Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (2015). Experiências de Parto em Portugal Inquérito às mulheres sobre as suas experiências de parto.
7. Korb D, Goffinet F, Seco A, Chevret S and Deneux-Tharaux C (2019). Risk of severe maternal morbidity associated with cesarean delivery and the role of maternal age: a population-based propensity score analysis. CMAJ; 191 (13) E352-E360;