Transparência de preços e medicamentos inovadores na Europa 1780

Na maioria dos países europeus, os preços finais dos medicamentos inovadores, pagos pelas organizações pagadoras nacionais – em Portugal, o INFARMED – são confidenciais. Por outras palavras, os pagadores nacionais não sabem quanto os pagadores dos outros países europeus pagam pelo mesmo medicamento inovador.

Nos últimos anos, intensificou-se o debate sobre se deve ou não haver uma maior transparência dos preços líquidos dos medicamentos inovadores. Organizações como a ONU, a OMS ou a OCDE têm pedido uma maior transparência dos preços da indústria farmacêutica. Em 2019, a Assembleia Mundial da Saúde – órgão deliberativo da OMS, que reúne os ministros da Saúde dos 194 Estados-membros – aprovou uma resolução que reclama uma maior divulgação pública dos preços e dos custos de I&D dos medicamentos e de outros produtos de saúde que beneficiam do apoio de muitos governos do mundo.

Por vezes, quando se refere “transparência de preços”, faz-se confusão entre “transparência do processo de formação de preços” – em inglês, “pricing (process) transparency” – e “transparência dos preços líquidos” – em inglês, net price transparency. Vale a pena distinguir uma coisa da outra. A transparência do processo de formação de preços refere-se à transparência do processo usado para decidir preços, e tem como objetivo a responsabilização do processo de tomada de decisão do preço. A transparência dos preços líquidos refere-se à transparência dos preços finais à saída da fábrica que foram acordados entre os pagadores nacionais e os fabricantes, e tem como objetivo divulgar eventuais descontos preferenciais que alguns pagadores podem ter obtido.

É consensual aceitar que a transparência na tomada de decisão do preço beneficia o funcionamento do mercado farmacêutico da inovação porque suporta a boa governança, melhores decisões e mais eficiência.

Já a discussão sobre a divulgação dos preços líquidos dos medicamentos inovadores é toda uma outra conversa. Muitos decisores de política são favoráveis a uma maior transparência dos preços líquidos porque têm a perceção de que a indústria farmacêutica tem lucros excessivos e acreditam que mais transparência conduzirá inexoravelmente a uma baixa dos preços dos medicamentos inovadores pagos pelas autoridades nacionais competentes. Veremos, ao longo deste texto, que isto poderá não ser nada assim, e que mais transparência poderá impactar negativamente doentes, pagadores e indústria farmacêutica.

As opiniões sobre o efeito de mais transparência nos preços dos medicamentos inovadores dividem-se desde logo quando quem é chamado a pronunciar-se é quem tem a responsabilidade de negociar os preços dos medicamentos em nome dos sistemas públicos de saúde. No estudo “The consequences of greater net price transparency for innovative medicines in Europe: searching for a consensus”, de que sou coautor, e que está disponível para download gratuito em ResearchGate.net, fez-se a seguinte pergunta a pagadores europeus atualmente em funções, antigos pagadores e consultores de pagadores: “O que antecipa que poderá suceder aos preços dos medicamentos inovadores no seu mercado (não o que gostaria que acontecesse) se o nível de transparência de preços aumentar em todos os mercados europeus, incluindo no seu próprio mercado (o que fará com que os preços até aqui confidenciais no seu mercado passem a ser conhecidos por terceiros), e se, ao mesmo tempo, as empresas farmacêuticas reagirem estrategicamente à revelação dos acordos confidenciais?” Entre os dezasseis respondentes de diversos pontos da Europa, cinco responderam que os preços baixariam, cinco disseram que os preços aumentariam, quatro afirmaram ser da opinião de que os preços não sofreriam alterações, e dois disseram não poder prever o efeito de mais transparência nos preços dos medicamentos inovadores porque, segundo eles, poderá dar-se o caso de uns preços subirem e de outros baixarem dependendo dos níveis de preços atuais e das características dos fármacos. Além disso, os pagadores dos medicamentos inovadores manifestaram preocupação em tornar os seus próprios preços mais transparentes porque acreditam que a confidencialidade lhes permite negociar preços mais vantajosos para os sistemas públicos que representam.

Um primeiro efeito de mais transparência dos preços líquidos dos medicamentos inovadores na Europa seria a convergência dos preços dos medicamentos inovadores. A convergência dos preços decorreria do uso frequente dos mecanismos de preços de referência internacionais. Se for possível aos negociadores referenciar preços noutros mercados, os fabricantes passarão a oferecer preços semelhantes aos compradores para evitar uma espiral descente dos preços.

Também é provável que a convergência dos preços atinja desproporcionalmente os mercados de mais baixo rendimento. Embora seja difícil de observar com exatidão, a evidência – como aliás também a teoria económica – sugere que os preços dos medicamentos refletem o poder de compra dos países. Os preços dos medicamentos tendem a ser mais baixos nos países pobres e mais altos nos países ricos. Se houver convergência de preços dos medicamentos inovadores, os preços que estão abaixo da média europeia – e que são praticados nos países de mais baixo rendimento – vão forçosamente aumentar enquanto os preços que estão acima da média europeia – pagos pelos países ricos – poderão baixar. No estudo que referi, um modelo computacional prevê aumentos de preços nos países de mais baixo rendimento que podem chegar a 60%.

Mais transparência nos preços líquidos dos medicamentos inovadores poderá também atingir desproporcionalmente os doentes dos mercados de mais baixo rendimento. O recurso aos mecanismos de preços de referência internacionais dá incentivos aos pagadores para protelar as negociações dos preços até ao ponto em que os preços dos outros mercados sejam conhecidos. Isto também dá incentivos aos fabricantes para lançar os medicamentos segundo uma ordenação que proteja os seus preços. Esta circunstância não é nova e já acontece atualmente, mas mais transparência de preços poderá amplificar estes incentivos e atrasar ainda mais o acesso aos medicamentos inovadores nos mercados com um potencial de preço mais baixo. Nos mercados de mais baixo rendimento, poderá não ser possível nem aos pagadores aceitar pagar um preço mais alto nem aos fabricantes oferecer um preço mais baixo, por muita vontade que os fabricantes tenham de lançar o medicamento inovador naqueles mercados. Ao contrário do que poderá suceder nos mercados de mais alto rendimento, nos mercados de mais baixo rendimento poderá não ser possível alcançar acordos durante vários anos até ao momento em que, por consequência da entrada de concorrentes noutros mercados, o preço do medicamento inovador acabe por cair até a um nível que os países de mais baixo rendimento consigam pagar.

Além disso, uma maior transparência dos preços líquidos dos mercados inovadores na Europa alteraria profundamente o funcionamento do mercado dos medicamentos inovadores.

Primeiro, os preços de referência internacionais passariam a ser usados com muito mais frequência para determinar os preços, e isto sucederia provavelmente à custa das abordagens de avaliação de tecnologias de saúde. Esta mudança na forma de determinar os preços dos medicamentos inovadores poderia depois ter também o efeito de levar os pagadores a quererem trabalhar com qualquer que fosse o método que lhes permitisse obter as maiores reduções de preço. Vemos assim por um lado, que existe o perigo de os preços dos medicamentos inovadores coincidirem cada vez menos com o valor real que os medicamentos oferecem nos mercados. Por outro lado, vemos que existe o perigo de que o processo de tomada de decisão por trás da determinação dos preços se torne menos transparente.

Segundo, mais transparência sobre os preços líquidos dos medicamentos inovadores na Europa pode estimular alguns países a constituir coligações ou formas de colaboração entre países com o objetivo de aumentar o seu poder de negociação. Existem hoje já diversos exemplos de colaboração entre países – por exemplo, na avaliação de tecnologias de saúde – mas ainda nenhuma colaboração foi usada consistentemente para a aprovação de todos os medicamentos. Em teoria, estas formas de colaboração podem ter um efeito positivo porque poderão melhorar a eficiência dos processos de avaliação e reduzir os tempos de acesso.

Terceiro, em alguns casos, uma maior transparência dos preços líquidos dos medicamentos inovadores na Europa poderia conduzir à má utilização de contratos de partilha de risco baseados em resultados de saúde. Em inglês, estes contratos são conhecidos como managed entry agreements. Hoje, estes contratos são usados para mitigar a incerteza dos médicos e dos pagadores em relação aos efeitos clínicos, custo-efetividade, ou impacto orçamental dos medicamentos inovadores. Com mais transparência de preços, os países podem ser tentados a recorrer a este tipo de contratos para conseguirem descontos inobserváveis ex post. O maior uso de contratos deste género para contornar a maior transparência de preços seria ineficiente e estaria totalmente desalinhada com a razão de ser destes contratos. Acresce referir que o mau uso dos contratos de partilha de risco poria em desvantagem os países que não tivessem a infraestrutura ou que tivessem menos experiência na implementação de modelos de pagamento mais sofisticados porque, ao contrário dos países com os meios ou a experiência, estes países não conseguiriam obter descontos confidenciais.

Falta ainda discutir o eventual impacto de mais transparência de preços na concorrência do mercado farmacêutico inovador e também falar do que poderá acontecer à própria inovação.

Sobre a concorrência, quando os mercados são competitivos, sabemos que a transparência de preços traz normalmente benefícios para os consumidores porque aumenta a concorrência. Mas quando as indústrias defrontam um certo grau de concentração de mercado – como é o caso da indústria farmacêutica inovadora –, a evidência mostra que mais transparência de preços pode na realidade facilitar comportamentos colusivos e isto conduzir a preços mais elevados. Sob um outro ângulo, mais transparência de preços pode também ser vista como um desencorajamento a mais competição dentro de uma determinada área terapêutica, o que colocaria menos pressão sobre os preços. Por mais surpreendente que isto possa parecer ao leitor, a competição dentro de mercados não transparentes levou frequentemente a quedas acentuadas dos preços.

O outro aspeto que devemos abordar é a inovação. Mais transparência dos preços líquidos dos medicamentos inovadores na Europa pode ter um impacto negativo na inovação. Embora a Europa seja apenas responsável por um pouco menos de 25% das vendas farmacêuticas globais, mais transparência de preços pode influenciar os preços dos países que usam os preços europeus como referência – por exemplo, a Austrália, o Canadá ou o Japão. Se nesses mercados os preços baixarem, isto pode conduzir a uma redução da receita e consequentemente a haver menos dinheiro para investir em I&D. Todo este efeito pode ainda ser largamente amplificado se a administração Biden mantiver o interesse na legislação dos preços de referência internacionais. Números redondos, os EUA e o Canadá são responsáveis por praticamente 50% do mercado farmacêutico mundial.

Para concluir, embora muitos decisores de política antevejam que mais transparência de preços levaria à redução dos preços dos medicamentos, uma análise baseada na teoria económica mostrou que o quadro é bem mais complexo e que, em muitos mercados, existe o perigo de o efeito ser o oposto do que se pretende. Qualquer opção de política que preveja mais transparência dos preços líquidos dos medicamentos inovadores na Europa deve basear-se na economia da formulação dos preços farmacêuticos e na evidência.

Nota: Este texto congrega os textos publicados no semanário NOVO entre 23 de julho de 2021 e 20 de agosto de 2021.

João Marques Gomes
Universidade Nova de Lisboa