Um hospital em 2049: Entre a tecnologia e a iniquidade 484

Durante umas breves férias, acompanhei as novidades televisivas sobre saúde, com destaque para a estreia da quarta temporada da série Charité na RTP (gostaria de alertar para possíveis spoilers!). Filmada em locais emblemáticos de Lisboa, esta temporada transporta-nos para uma visão futurista do prestigiado hospital de Berlim, que enfrenta graves desafios climáticos. Neste cenário, a investigação do microbioma e uma reforma nos cuidados de saúde assumem o protagonismo. Nesta reforma as seguradoras monitorizam a esperança de vida dos clientes e restringem o acesso aos cuidados com base na adesão a práticas de prevenção da doença. Como é comum nos universos distópicos, ficção e realidade misturam-se, convidando-nos a refletir sobre as consequências dos avanços tecnológicos e das desigualdades socioeconómicas.

No hospital futurista, existem quartos individuais e vastas áreas verdes, onde a tecnologia de ponta permeia todas as vertentes do trabalho dos profissionais de saúde. Desde auriculares de localização com software de tradução integrado, a videochamadas através de hologramas, tudo está voltado para tornar os cuidados de saúde mais eficientes. Enquanto algumas práticas ainda são ficcionais, como na neuro-tecnologia a existência de uma simulação que proporcione experiências virtuais personalizadas a doentes paralisados, outras são já realidade em muitos hospitais. Exemplo disso é o robot cirúrgico Da Vinci que vemos em vários episódios e que se encontra em operação na Fundação Champalimaud desde 2016. Estes dispositivos com braços robóticos para cirurgia minimamente invasiva são controlados à distância por cirurgiões através de um sistema computorizado, e oferecem maior precisão, livre dos tremores naturais das mãos, beneficiando doente e cirurgião durante o procedimento.

Apesar das inovações tecnológicas otimizarem a prestação cuidados, os profissionais de saúde continuam a desempenhar um papel essencial no diagnóstico e tratamento dos doentes. Os profissionais nesta temporada apresentam uma maior diversidade, menos dominada por brancos e homens, no entanto persistem outras desigualdades, evidenciadas pela discriminação dos doentes. As seguradoras recusam tratamentos a quem não segue estilos de vida saudáveis, utilizando um sistema de pontos, semelhante ao utilizado na China. Esta medida, em vez de promover a saúde, acaba por agravar a discriminação dos grupos socialmente desfavorecidos, como os refugiados climáticos ou a população com mais comorbilidades. A Organização Mundial da Saúde destaca a importância do conceito de equidade em saúde, visando garantir que todos alcancem o seu potencial máximo de saúde, independentemente das circunstâncias socioeconómicas. As iniquidades em saúde, com origem em determinantes socioeconómicos (como educação, trabalho e rendimento) e outros fatores (como acesso aos cuidados de saúde), afetam o estado de saúde da população. Portanto, a saúde da população depende do aumento da equidade, e esta requer intervenções nos fatores determinantes, incluindo na melhoria do acesso aos cuidados de saúde.

A série desafia-nos a repensar a “medicina do amanhã” ao mesmo tempo que nos alerta para a urgência de soluções que promovam a equidade e justiça no acesso aos cuidados de saúde, destacando a necessidade de reconhecer e resolver estes desafios. Talvez o próximo prémio na área da medicina possa ser atribuído àqueles que encontram soluções para estes problemas, em vez de apenas agraciar novas tecnologias?

PS: Para quem gostar de refletir sobre este tipo de reformas de saúde, recomendo a leitura do romance distópico de 2009 “Corpus Delicti: Ein Prozess” da escritora Juli Zeh, traduzido para inglês pela editora Vintage com o nome “The Method”.

Texto de Joana Pestana
Doutorada em Economia da Saúde e investigadora no Nova Health Economics and Management Center da Nova School of Business and Economics