O simpósio One Health, em Lisboa, juntou especialistas da saúde e do clima. E mesmo com sustos e cenários mais dantescos, há quem, mesmo já tendo visto de tudo, se mostre confiante.
Saúde ambiental, animal e humana. Foi sobre estes temas que versou o simpósio One Health, que aconteceu a 30 de janeiro no auditório Manuel Machado Macedo, no Polo de Investigação da Nova Medical School, em Lisboa. Organizado pela Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa (SCMED) em parceria com o Conselho Português para a Saúde e Ambiente (CPSA), o evento foi aquilo a que se propôs: uma discussão sobre várias formas e envolvendo diversos temas sobre o conceito de uma saúde una em todos os sentidos.
“Eventos climáticos extremos e saúde”, “Resistência antimicrobiana” (onde esteve presente Helder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos) e “Alterações climáticas, poluição e saúde” foram as três partes em que foi dividido o simpósio.
Antes dos três grandes temas, a sessão de abertura esteve a cargo de Maria do Céu Machado, presidente da SCMED, e Luís Campos, médico internista e presidente do CPSA, organismo criado em outubro de 2022, que agrega ordens profissionais, associações, sociedades científicas, laboratórios, grupos privados de saúde, santas casas e a Indústria Farmacêutica.
Luís Campos começou por falar sobre a criação do conselho a que preside e a necessidade da mesma, dado que «a saúde das pessoas está dependente do ambiente e da saúde dos animais», enumerando ainda como alguns dos problemas «a população mundial, a falta de recursos e a repercussão do ambiente na saúde das pessoas». «Sabemos a pegada ecológica do setor da Saúde: cerca de 4% do efeito estufa», começou por afirmar.
Sobre o CPSA, destacou ainda que conta já com 49 organizações que têm como propósito ser uma «voz comum» que identifique hipóteses de melhoria e evolução. No entanto, Luís Campos referiu que «está quase tudo por fazer» e que «falta ciência nas decisões políticas».
Racionalismo, adaptação e emissões
Usou da palavra em primeiro lugar Filipe Duarte Santos, licenciado em Geofísica pela Universidade de Lisboa (1963) e doutorado em Física Nuclear pela Universidade de Londres (1968). Renomeado nome na área a nível também internacional, foi diretor do Instituto de Meteorologia de Portugal entre 1987 e 1988, tendo coordenado ainda o primeiro e único “Livro Branco sobre o Estado do Ambiente em Portugal” (1991), de entre outros destacados cargos e atividades ao nível da carreira.
Pegando no tema “Eventos climáticos extremos e saúde”, Filipe Duarte Santos apontou dois caminhos para se lidar com o contexto atual e futuro das variabilidades e alterações climáticas: em primeiro lugar, a necessidade de adaptação ao clima, que em Portugal é «mais quente e seco» e, em segundo, a «mitigação e redução de emissões» de efeito estufa.
O especialista, que em 2006 coordenou o primeiro e inovador documento sobre o impacto das alterações climáticas na saúde em Portugal, explicou que a adaptação começa por «ter cenários climáticos do clima futuro», para que se possam «avaliar os impactos nos diferentes setores socioeconómicos e sistemas biogeofísicos». Posto isto, podem então ser identificadas medidas de adaptação e «desenhar uma estratégia de adaptação». Por outro lado, a má adaptação recorrerá numa maior vulnerabilidade às alterações climáticas, seja «direta ou indiretamente, podendo comprometer significativamente as capacidades ou oportunidades de adaptação presentes e futuras».
Filipe Duarte Santos falou várias vezes do Acordo de Paris e das metas para o aquecimento global, achando «muito difícil, mesmo com passos já dados», que se alcance a meta dos 1,5º. Destacou que, durante a pandemia covid-19, as emissões caíram 5% e «dizia-se que era uma oportunidade, mas à escala global não se verificou».
«A União Europeia é líder neste processo, que tem sido extraordinário desde os anos 1990 até 2019, reduzindo as suas emissões em 35%», frisou. Outras grandes economias globais não têm conseguido acompanhar a UE, no entanto, com os Estados Unidos da América a aumentarem emissões até 2005 e «só depois começarem a baixar» e a Índia e a China estarem a aumentar exponencialmente os seus números. «1,5º iria ser muito difícil porque envolveria algo muito disruptivo», o que, aliás, foi visível através dos diversos números e gráficos apresentados.
No entanto, e já depois de explanar também sobre os efeitos de alguns eventos climáticos extremos no planeta, Filipe Duarte Santos deixou palavras de esperança: «Estou convencido de que somos racionais, compreendemos as questões e somos capazes de agir. É possível fazer uma transição energética e minimizar os impactos». Referiu ainda que os alertas que o setor da Saúde pode fazer à população são «essenciais».
Farmacêuticos e a resistência antimicrobiana
Depois de uma apresentação que contextualizou a big picture e impactou a audiência, ainda que baseada em evidência científica e contexto atual, a palavra passou para quem ia falar de “Resistência Antimicrobiana”. Neste caso, a veterinária Filipa Ceia abordou a “Visão da medicina veterinária e humana”; já Artur Paiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e chefe do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar Universitário de São João e eleito em 2020 pela DGS para liderar o programa nacional para a Prevenção e Controlo de Infeções e Resistência aos Antimicrobianos debruçou-se sobre “A prevenção das IACS”.
Ana Amaro fez ainda parte deste painel, tendo dedicado a sua apresentação ao tema “Antibióticos e animais produtores de alimentos”, tal como Helder Mota Filipe, que falou sobre “O papel do farmacêutico” no que toca à resistência antimicrobiana.
O bastonário começou por sublinhar os cerca de 5 milhões de mortos, número apontado por um estudo de 2019, relacionados com resistência antimicrobiana. «Há ainda outro número que me sensibiliza, que é o quase meio milhão de pessoas que todos os anos desenvolvem tuberculose multirresistente», destacou. O responsável assinalou que ia trazer uma «vertente mais farmacêutica» à discussão, referindo que a resistência aos antimicrobianos é «natural», pois os vírus adaptam-se. O «problema não é criarem resistências aos antibióticos, é criarem resistências e não termos outros», sublinhou, questionando de seguida se era a ciência a não conseguir trabalhar na área ou se, ao invés, seria a Indústria Farmacêutica a não ter «interesse» no desenvolvimento de novos antibióticos. «É natural que não tenha», disse, acrescentando: «Não gosto quando as pessoas se referem à Indústria Farmacêutica como “as farmacêuticas” porque, para mim, farmacêuticas são as minhas colegas. Esquecemo-nos da parte importante que é a palavra “indústria”. Tal como qualquer outra, a Indústria Farmacêutica pretende investir, criar inovação e obter lucro para poder novamente investir e criar inovação. E é isto que pretendemos da indústria», ressalvou. Além disso, Helder Mota Filipe reforçou que «não é apelativo para a Indústria Farmacêutica desenvolver novos antibióticos com o sistema que temos neste momento».
Os incentivos e a globalização
O responsável falou ainda na «necessidade de criar incentivos», referindo que «a União Europeia está preocupada com isso». «São precisos incentivos diferentes daqueles que existem para o desenvolvimento de outros medicamentos, para que a Indústria se sinta interessada em produzir novos antibióticos. Um dos modelos é pagar à Indústria, independentemente do volume do produto desenvolvido que vai ser utilizado, pagar um pacote de desenvolvimento. França tentou, mas mesmo assim não está a ter grande sucesso…», deixou no ar, falando na necessidade de uma «visão estratégica». Continuando no mesmo assunto, referiu que «outro fator importante é a globalização», porque «não se pode achar que resolvendo o problema em Portugal, gerindo o problema, que estamos a resolver o problema português». «Basta que haja um desenvolvimento de uma multirresistência noutro país, que o doente apanhe o avião, que chegue a Portugal e teremos um novo problema em território nacional com um novo perfil de resistência», acrescentou.
Sobre a «vertente do papel dos farmacêuticos», o bastonário declarou que «é preciso aproveitar melhor a cobertura farmacêutica devido ao potencial imenso no desenvolvimento de conhecimento e literacia para a população em geral relativamente à boa utilização dos antibióticos». O responsável destacou que «temos de trabalhar em conjunto e de forma multidisciplinar para que possamos ter mais antibióticos e podermos tratar as infeções que são provocadas por bactérias multirresistentes, aproveitando as potencialidades de todos os profissionais envolvidos e da população em geral em termos de literacia e do papel de cada um com o grande objetivo que é boa utilização dos antibióticos de forma a diminuir o risco».
A finalizar e já acerca dos impactos ambientais, Helder Mota Filipe falou sobre a nova revisão da legislação farmacêutica na Europa: «atualmente, para aprovarmos um novo medicamento tem de haver uma avaliação do impacto ambiental, mas é uma avaliação ligeira do impacto ambiental apenas da fórmula farmacêutica final, naquela dosagem e na forma ideal de utilização. Tivemos cá em Portugal a diretora geral da saúde da UE, que comunicou que nesta revisão se pretende que, quer nos medicamentos de medicina humana, quer nos medicamentos de medicina veterinária, esta avaliação passe a ser para todos os componentes do medicamento e durante todo o ciclo de desenvolvimento, produção e utilização do medicamento».
«Promover a literacia na utilização do medicamento»
Depois de falar também sobre o «problema ambiental que é o mau tratamento de resíduos» e de finalizar a sua intervenção, o bastonário da Ordem dos Farmacêuticos falou com a FARMÁCIA DISTRIBUIÇÃO, onde explanou o «farmacêutico tem dois papéis importantes» neste âmbito: o primeiro relaciona-se com «a utilização racional do medicamento», o que significa que este deve ser usado da forma correta, sem interrupção, nem falta de adesão ao tratamento; o segundo, o farmacêutico tem um papel importante para garantir que «os resíduos e sobras são adequadamente rejeitados?, frisou, lembrando a importância do sistema nacional da Valormed «para que esses resíduos possam ser tratados adequadamente com menos impacto para o ambiente». O responsável destacou ainda a importância de «promover a literacia na utilização do medicamento e no sentido de termos uma saúde mais amiga do ambiente e perceber que sem um ambiente de qualidade também temos menos saúde». Trata-se de um papel que o farmacêutico pode ter, como outros profissionais de saúde, mas «o farmacêutico é dos profissionais de saúde mais acessíveis, mais distribuídos pelo país e com maior contacto com toda a população portuguesa. É importante e acho não tem sido bem aproveitado pelas autoridades de Saúde Pública no sentido de promover o farmacêutico como um agente importante do aumento da literacia em saúde», finalizou.
Da parte da tarde, tiveram lugar as intervenções sobre “Alterações climáticas, poluição e saúde”, contando com os especialistas Paula Sobral (“Microplásticos em espécies marinhas: mitos e realidades”), João Queiroz e Melo (“Cuidados de saúde e ambiente”), Daniel Caldeira “Poluição e doenças cardiovasculares”) e Luís Miguel Borrego (“Poluição e alergia”).
Artigo publicado na Revista Farmácia Distribuição #363, março 2023, Edição Especial Serviços Farmacêuticos